Patrícia Soler: Minguinho


Ilustração original de Jayme Cortez para a primeira edição de O Meu Pé de Laranja Lima.
Foto: Jayme Cortez/Reprodução. Publicada no jornal Estadão.

Minguinho

Estou abancada numa cadeira. Cheira a café. Voltei ao lugar de pausa. Música e livros ao redor. Frases perdidas no ar, enroladas com barulho de loiça, ao fundo. Tudo misturado. Num canto, eu, o livro em cima da mesa, olhando em redor, procurando uma paz invisível.
Zezé, e a «História de um meninozinho que um dia descobriu a dor…», continua entranhado nos meus pensamentos.
Todos nós já fomos um pouco Zezé, fizemos maluquetas como o Zezé, sentimos a dor e a amargura do pequeno reguila.
E a dor enterrada em todo o corpo, crua, dura, nua, agre. Tudo o que uma dor excruciante consegue ser…
Também fui Zezé de alguma forma ou de todas, ainda não sei.
Fui criança e adulta, sobrevivi a sonhos e realidades. Tive pessoas-luz e «árvores velhas de raízes escuras».
Inventei sonhos sem realização, desenhei um mundo e fugi dele. Ganhei medo para sempre e carrego uma mala de sombras que tento libertar a cada dia.
Segredos só meus que vão ficar à minha guarda até à eternidade.
Tal como tu, Zezé, eu também tenho o meu Minguinho. Acompanha-me há tanto que esqueci a data. É onde o céu e a terra se encontram. Lá, há paz como em nenhum outro lugar do mundo. O silêncio é apaziguante. O cheiro, inconfundível.
Está eternamente lá. E lá, murmuro palavras, caem lágrimas e angústias. Lá, zango-me e faço as pazes.
Lá, agradeço e reconheço. Dou valor e aprecio.
O meu Minguinho ouve e responde à sua maneira. Envia-me recados, avisos, lições de vida, e eu vou lendo os recados com o coração apertado ou a rebentar de alegria.
No alto do Minguinho sinto-me a voar sobre a paisagem, mais leve que as nuvens.
Olho as árvores e acompanho nelas todas as mudanças de estação do ano. Frondosas de folhas muito verdes, ou ramos secos despidos e agitados apenas pelo vento e pela chuva.
Às vezes, debaixo dessas árvores ou debruçada na varanda, mato gente, como o Zezé. «Mato gente no coração. Vou deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu.»
Perco-me e encontro-me neste livro. Divago.
O Meu Pé de Laranja Lima condenou-me, durante vários dias, ao choro compulsivo, à percepção da dor de um menino pequenino, ao devaneio dos seus sonhos e à consciência da sua imensa ternura.
Aquelas páginas foram a ponte para tantas emoções. Romperam com o meu isolamento e fizeram-me curiosa. Salvaram-me da minha própria tristeza e solidão de menina crescida, porque quase todos nós somos crianças a quem «contaram as coisas muito cedo».
Li o livro duas vezes com 20 anos de diferença e percebi, de forma bem díspar, que as pessoas são iguais em todos os lugares do Mundo.
O Meu Pé de Laranja Lima é um livro simples, mas, como na maioria das vezes, é na maior simplicidade que encontramos o carinho, a ternura, a inocência e a fantasia, mas também a dor, a tristeza e a saudade. Encontramos a vida nas coisas mais frugais.


Patrícia Soler

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