Maria João Seixas: Que sou eu?

{Desafio da semana — 4 de Junho de 2020}


Quadro de Federico Zandomeneghi

Que sou eu?


Escrever um livro não nos torna escritores, assim como ler um livro não nos torna leitores. Quando amamos a literatura, ela torna-se um hábito que vestimos, trazemos connosco, carregamo-la na nossa alma, acarinhamo-la nos nossos braços.

— Não encontro nada mais relaxante do que abrir um livro e descansar os meus olhos sobre as palavras — disse-me, um dia, a minha filha, e eu reconheci nela a leitora que sempre quis ser e, por variadas razões, nunca fui. Levei quase uma vida para descobrir o que ela, no auge dos seus onze anos, me disse de forma tão sincera e espontânea.

O processo de explorar o mundo dos livros e o prazer da leitura não me foi fácil, nem espontâneo. Fascinava-me mais vê-los em fila numa estante, o cheiro, o desfile das incontáveis palavras enquanto folheava todas as páginas para que elas passassem, num milésimo de segundo, pelo meu polegar. Mas mastigar histórias, dissecar personagens e remoer pensamentos era algo a que não queria dedicar o meu tempo.

As histórias chegavam até mim por vias bem mais fáceis e imediatas: pelo relato da minha irmã mais velha, que sempre foi uma ávida leitora, pela televisão, pelo teatro. As histórias começaram a aparecer na minha cabeça e eu tinha de as colocar em algum lugar, dar-lhes um sítio para estar, para crescer, para ser. Mais do que a palavra lida, foi a palavra escrita que cedo começou a chamar por mim. Agora, era eu que as mastigava, dissecava as personagens que me assaltavam a mente, passava para o papel os meus pensamentos, em prosa ou em verso.

Pelo caminho, tropecei em textos que não pude ignorar: a descrição exímia do «Ramalhete» povoou a minha imaginação de histórias e dramas que se escondiam em grandes casas e mansões, o drama do «Romeiro» que não é ninguém mas que precipita a tragédia, uma «Morgadinha» que tem tanto de inteligente como de romântica. Foram os clássicos que me trouxeram o fascínio pela escrita. O saber construir um enredo de forma a que não escape nada ao leitor, de forma a que ele veja a história como se estivesse lá, in loco. O ser Deus que põe e dispõe das personagens, das suas vivências, dos seus sentimentos, dos seus destinos.

A figura do escritor fascinou-me muito mais do que a do leitor, e demorei algum tempo a perceber que eles são um só: um leitor pode ser um escritor, mas um escritor nunca poderá deixar de ser um leitor, de livros, de pessoas, da vida.

Mas o escritor tem o pensamento em forma de palavra lida, primeiro, e depois escrita. E eu pergunto-me: Onde me encontro? Que sou eu?


Maria João Seixas

Comentários