in Coentral — História, usos, costumes e tradições, de Joaquim Ferreira
A biblioteca
Uma vez por semana, a carrinha parava junto do aglomerado de casas da mais pequena aldeia; era conhecida por «aldeia das hortênsias», talvez porque as varandas se enchessem daquelas coloridas e arredondadas flores.Era a aldeia com mais crianças na proximidade. António tinha os pais emigrados. Vivia com a avó e com um tio que estava à guarda dela por nunca se ter orientado na vida. Por isso, o menino ansiava por aquele dia da semana, para que os livros o confortassem, mas, acima de tudo, lhe devolvessem responsabilidade, ao ter de guardá-los, estimá-los e restituí-los com a mesma imaculabilidade com que os havia retirado da prateleira e os havia aproximado ao corpo no momento seguinte ao senhor Manuel, antigo funcionário da Fundação, lhos entregar. Fazia-o lembrando-se dos pais, que lhe haviam ensinado o conceito de compromisso como imperativo de honra. Não queriam que falassem do filho, ainda mais estando eles ausentes, sem poderem defendê-lo.
Com os olhos muito azuis, habitual naquela localidade, inicialmente povoada por povos do Norte da Europa, e com um cabelo cheio de fios louros encaracolados, que tanto trabalho davam à avó para pentear, Antoninho, como carinhosamente a família o chamava, sabia que os livros eram a única prenda que nunca viria da América, a terra dos sonhos, e de onde os barcos partiam cheios de barris contendo guloseimas das mais diversas cores, atoalhados com os mais variados padrões e texturas, roupas, algumas que nunca iriam servir pelos grandes tamanhos, brindes e muitos utensílios para a cozinha da avó, alguns deles sem que ela nem sequer soubesse a razão da sua utilização. Mas vinha da América, daquele novo mundo, que só no imaginário lhe era possível descrever.
Com poucos cavalos e depois de percorridos centenas de quilómetros, eis que chegava a Citroen junto da aconchegante aldeia, onde se iam aglomerando pequenos e graúdos, alguns com as mãos nos bolsos, como se procurassem as moedas para, depois de escolherem os livros, pagarem.
Para a maioria, era o cheiro que vinha da encadernação que os fazia sonhar, ainda antes de virarem a primeira folha.
Alberto, uma criança com ar de crescido, vestia umas jardineiras escuras e uma camisola de lã, em tom cru, o mesmo da cor da lã das ovelhas, um boné acinzentado, e umas botas de cano alto para onde as calças se metiam, dando-lhe ainda mais aquele ar de quem precisou fazer-se adulto antes de ter sido criança.
Ao escutar a primeira buzinadela, e já vestido a rigor, saiu pela porta da sua casa de pedra, também ela escura, e, saltando os dois degraus de uma só vez, depressa atravessou a ponte sobre a ribeira e meteu-se na fila meio desorganizada, localizada atrás do carro, espreitando para dentro, já que as portas traseiras se encontravam abertas.
No trajecto, havia-se cruzado com Carlos, um pouco mais velho, e que prestava menos atenção ao reboliço do momento. Salvo quando o peixeiro e o merceeiro buzinavam, nas missas de domingo, e na festa do Padroeiro, que coincidia com a vinda dos emigrantes, nunca se via tanta gente junta. Carlos ficava sempre indiferente! Os livros também não o encantavam, por isso deixou-se ficar por ali, distanciando-se mas mantendo a atenção suficiente que lhe permitisse ir sabendo do que se estava a passar.
As pessoas mais letradas também apareciam no Largo da Junta nesses dias. Aproveitavam para conversar sobre assuntos decorrentes da localidade.
As senhoras de lenço atado ao pescoço e os senhores de chapéu propiciavam uma atmosfera burguesa, implícita até nos conselhos que davam aos mais novos sobre as escolhas dos livros, tantas vezes censurados, mas cobiçados.
As crianças misturavam-se no amontoado de pessoas, esticando os pequenos braços para poderem ser vistas e trocarem os seus livros por outros. Por isso é que Alberto quis ser dos primeiros a chegar à carrinha da Gulbenkian; evitava-lhe esticar-se demasiado e amaciava-lhe o ego, já que, não tendo idade para envergar o chapéu e parecer o adulto que sonhava ser, pelo menos não ficava escondido entre os mais velhos.
Satisfeito com as suas três escolhas, depressa se sentou num degrau da igreja, que ficava junto à Junta de Freguesia, e logo sentiu a respiração de mais meia dúzia de crianças que espreitavam sobre os seus ombros, enquanto ele, aleatoriamente, abria uma página de um dos livros, como já soubesse o desenrolar daquela história. Tinha sido o seu pai, com poucos estudos, quem lhe tinha transmitido o gosto pela leitura. Levantou a cabeça por breves momentos e reparou numa senhora que o avistava da parte de dentro de uma janela e que lhe sorriu, aliás como fazia com todos os que passavam junto da sua casa. Baixou novamente a cabeça e, em breves minutos, ficou rodeado de outras tantas crianças que, debruçadas umas sobre as outras, quase caíam sobre o Berto, assim chamado pelos mais novos, e quase lhe estragavam o livro. Saturado, levantou-se e prensou os três livros em paralelo, posicionou-os debaixo dos seus pequenos braços e, parecendo uma pessoa determinada, foi desaparecendo pela rua, em direcção ao coreto, onde costumava sentar-se nos finais de tarde.
O relógio da igreja marcava as 16 horas e, como tal, era hora de começar a recolher. A carrinha ia embora até regressar na semana seguinte e provocar a mesma emoção, como se nunca tivesse por lá parado. Os habitantes começavam a dispersar, enchendo as ruas normalmente vazias; um a um, entravam em suas casas, e poucos aproveitavam os últimos minutos de sol, já que os dias ainda eram curtos e o jantar era servido muito antes de haver sono.
No coreto, encostado a um corrimão de madeira corroído pelas chuvas abundantes dos invernos húmidos, encontrava-se o padre da paróquia. Pensava em como os livros também lhe tinham possibilitado romper com a iliteracia do mundo que o rodeou até sair para o seminário.
Olhou para Alberto, que se mantinha quieto no degrau, ainda sozinho com a história que lhe preenchia a sua rotineira vida. Desceu as escadas do lado oposto e seguiu. Amanhã teria tempo para conversar com ele.
Cármen B. Mendes
(Esta é uma história de ficção, com base num desafio do Clube de Letras, sobre o poder dos livros sobre nós. As Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian foram a melhor expressão de como os livros uniam as pessoas de uma localidade a um propósito comum: partilha, leitura e conhecimento, sem discriminação pela classe social a que pertenciam.)
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