No início era o verbo
«No início era o verbo»
- so·bre·vi·ver -
do latim supervivo, -ere
Domingo de Páscoa, frio e prateado. Pingos grossos ameaçam chuva forte. Mesmo assim Daniel decide sair de casa.
Este ano resolvera não ir à terra na Semana Santa. Apesar do choro da mãe e do desconsolo do irmão, Daniel reclama essa semana para si, longe de todos.
O céu continua cinza cerrado enquanto sobe o monte até ao «Sítio do Sossego». Pela vereda vai recolhendo pequenas pedras e guardando no bolso do casaco.
Mais pedras, Daniel (pensou ele).
— Olha, esta tem a forma de uma estrela. Vai ser útil concerteza.
Ao fundo já vislumbra o local onde se vai sentar. Abre o livro de Sophia ao acaso e começa a ler:
«A hora da Partida
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.»
Sabia que se o tivesse procurado não o encontraria.
Deus está ali — nas palavras, no livro, nas pedras e nuvens, no Céu e na Terra.
Para Daniel bastam pedras e livros. Uma vida simples e vive cheio.
Pondera mais uma vez a sua ida para o Mosteiro, mas no fundo sabe que a decisão já está tomada há muito. Provavelmente desde que nasceu. Não foi uma escolha foi antes o ter-se sentido escolhido.
Os poucos que já adivinhavam a sua escolha questionavam a sua clausura eterna, o recolhimento e a solidão.
Como vai sobreviver?
Daniel não suporta a palavra sobreviver, ao ouvi-la sente um vazio inexplicável, uma sensação de arrasto sem vida, sem percepção, um perdurar sem sentido e sem razão. O quão mau era sobreviver. Ele não quer sobreviver, ele deseja superviver.
Naquele sítio sereno, meio húmido e de luz cinza sombria, volta a pensar na sua escolha de ser monge e há quanto tempo sonha com essa vida simples onde nada se faz fora do coração.
Há muito que continuamente reflecte se é esta a vida que deseja viver, e sim, sabe que sim, que só assim nessa serenidade se sentirá supervivo. No seu próximo texto irá inventar uma palavra — superviver — e sobreviver irá desaparecer do seu dicionário.
Porque achará o Homem que só vive se comprar, se viajar, se navegar? Porque tem o Homem de fugir, voar e partir? Mas ele não sabe a que Mundo pertencemos?
Já temos tudo e corremos vários reinos à procura do que se encontra apenas no nosso íntimo. Que falha de consciência temos nós quanto à nossa supervida interior…
«Acontecera que as coisas se destruíssem sem que nelas sobrevivesse
E era tarde.»
Daniel Faria
Patrícia Soler
Fontes:
* https://www.publico.pt/2001/07/14/jornal/daniel-faria-o-rapaz-raro-159820
* https://www.escritas.org/pt/t/47971/acontecera-que-as-coisas-se-destruissem
- so·bre·vi·ver -
do latim supervivo, -ere
Domingo de Páscoa, frio e prateado. Pingos grossos ameaçam chuva forte. Mesmo assim Daniel decide sair de casa.
Este ano resolvera não ir à terra na Semana Santa. Apesar do choro da mãe e do desconsolo do irmão, Daniel reclama essa semana para si, longe de todos.
O céu continua cinza cerrado enquanto sobe o monte até ao «Sítio do Sossego». Pela vereda vai recolhendo pequenas pedras e guardando no bolso do casaco.
Mais pedras, Daniel (pensou ele).
— Olha, esta tem a forma de uma estrela. Vai ser útil concerteza.
Ao fundo já vislumbra o local onde se vai sentar. Abre o livro de Sophia ao acaso e começa a ler:
«A hora da Partida
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.»
Sabia que se o tivesse procurado não o encontraria.
Deus está ali — nas palavras, no livro, nas pedras e nuvens, no Céu e na Terra.
Para Daniel bastam pedras e livros. Uma vida simples e vive cheio.
Pondera mais uma vez a sua ida para o Mosteiro, mas no fundo sabe que a decisão já está tomada há muito. Provavelmente desde que nasceu. Não foi uma escolha foi antes o ter-se sentido escolhido.
Os poucos que já adivinhavam a sua escolha questionavam a sua clausura eterna, o recolhimento e a solidão.
Como vai sobreviver?
Daniel não suporta a palavra sobreviver, ao ouvi-la sente um vazio inexplicável, uma sensação de arrasto sem vida, sem percepção, um perdurar sem sentido e sem razão. O quão mau era sobreviver. Ele não quer sobreviver, ele deseja superviver.
Naquele sítio sereno, meio húmido e de luz cinza sombria, volta a pensar na sua escolha de ser monge e há quanto tempo sonha com essa vida simples onde nada se faz fora do coração.
Há muito que continuamente reflecte se é esta a vida que deseja viver, e sim, sabe que sim, que só assim nessa serenidade se sentirá supervivo. No seu próximo texto irá inventar uma palavra — superviver — e sobreviver irá desaparecer do seu dicionário.
Porque achará o Homem que só vive se comprar, se viajar, se navegar? Porque tem o Homem de fugir, voar e partir? Mas ele não sabe a que Mundo pertencemos?
Já temos tudo e corremos vários reinos à procura do que se encontra apenas no nosso íntimo. Que falha de consciência temos nós quanto à nossa supervida interior…
«Acontecera que as coisas se destruíssem sem que nelas sobrevivesse
E era tarde.»
Daniel Faria
Patrícia Soler
Fontes:
* https://www.publico.pt/2001/07/14/jornal/daniel-faria-o-rapaz-raro-159820
* https://www.escritas.org/pt/t/47971/acontecera-que-as-coisas-se-destruissem
Comentários
Enviar um comentário