Desafio de segunda-feira: Mudar as palavras, mudar o mundo

Ilustração de Adriana Oliveira


Há uns anos, escrevi este conto com um objectivo que nunca se concretizou. Mais tarde, a Adriana Oliveira criou as ilustrações, que vieram dar vida à Dida e ao Narrador. Texto e ilustrações continuaram na gaveta, mas agora que estamos todos «na gaveta», apetece-me libertá-los e partilhá-los.
Poderão ler esta história aqui, no blogue, ou descarregá-la em pdf: bastará clicar neste link. Espero que gostem de conhecer esta miúda com a mania de mudar palavras, bem como o seu melhor amigo, um cão que é também um excelente ouvinte.

E fica lançado o desafio desta semana: se pudessem mudar o mundo mudando palavras, por que palavra(s) começariam?


Boas escritas,

Ana Marta Ramos 





A dança da palavra MUDANÇA 


Texto: ANA MARTA RAMOS
Ilustração: ADRIANA OLIVEIRA


  

A primeira decisão que a Dida tomou após saber que teria de mudar de casa foi não gostar da ideia.
A segunda foi não gostar da palavra MUDANÇA.
E a terceira foi guardar todas essas decisões apenas para si. Não se sentia confortável a partilhar as suas ideias com outros sem ter podido,  primeiro,  pensar muito bem sobre elas. E como poderia pensar muito bem sobre a ideia de mudança com essa palavra tão desajeitada a atrapalhar?

Bem, mas essa questão de não gostar de partilhar ideias pouco amadurecidas não se aplica a mim. Eu sei sempre tudo sobre a Dida. Tudo o que interessa, pelo menos.
Eu sou o Narrador.

— Mu-dança. Como se tivéssemos algum motivo para dançar.

Foi assim que ela me contou a grande novidade.
Depois, fechou a porta da sala e ficámos os dois sentados no chão, no corredor, a olhar para os quadros pendurados na parede, assimétricos e, parecia-me, ligeiramente desfocados.

— Nunca pensei nas casas como tendo idade, mas agora consigo ver esta casa envelhecer. Também vês, Narrador? Está a murchar, será que está triste por nos irmos embora? Talvez esteja cansada de nós, é verdade que fazemos algum estardalhaço... Oh, e os vidros que eu parti, as paredes que eu risquei, os líquidos que entornei no soalho... Ah! — Virou-se de repente para mim, meia trocista, meia acusadora. — E tu, quando eras cachorrinho, fazias chichi nos cantos e arranhavas as portas todas!

Ora, é verdade, eu lembro-me bem e lamento-o muito, casa envelhecida. Palavra de cão que nunca o fiz por mal, tal como a Dida nunca quis maltratar-te. São os reveses da aprendizagem, sabes?

— Achas que vem para cá morar uma família nova, com uma miúda nova e um cão novo, Narrador? Oh, e será que vão fazer esta pobre casa passar por tudo aquilo de novo?

Talvez a casa não se importe com isso, talvez seja essa a sua vocação, a de ensinar. Aposto que até rejuvenesce mal nos veja da porta para fora, só por saber que vêm aí novos começos.

— Ai, mas porque é que toda a gente acha que novo é bom? — Suspirou. — Anda, Narrador, vamos dar uma volta. Preciso de pensar.

Não sei dizer, ao certo, quantos anos tem a Dida. Sei que fomos crescendo juntos e que aprendemos juntos praticamente tudo aquilo que sabemos hoje. Eu sei coisas que a Dida nunca poderia saber se eu não lhas tivesse ensinado; coisas de cão, como,  por exemplo, confiar no olfacto para decidir se devemos confiar em alguém. E a Dida sabe coisas que eu nunca poderia saber se ela não mas tivesse ensinado, claro; coisas de pessoa, como, por exemplo, partir um biscoito no número exacto de pedaços que durem um dia inteiro. Ou inventar palavras.

— Mu-dança? Diz-me lá tu, Narrador, se achas que existe alguma coisa de dançável neste transtorno de esvaziar uma casa inteirinha, empacotar tudo, dizer adeus aos vizinhos de sempre e carregar caixotes e caixotes para uma casa nova, com vizinhos novos, acerca dos quais nada sabemos? Não, não, antes de conseguir reflectir sobre esta história de irmos morar para uma casa nova tenho de fazer alguma coisa acerca desta palavra desastrosa.

Parámos à sombra de uma árvore enorme. A Dida analisava atentamente cada centímetro quadrado da casca e apertava os ramos ao seu alcance para lhes sentir a robustez. Eu coçava-me. Costumo aproveitar as pausas dela para me coçar. As pausas nas caminhadas e as pausas nas conversas. Ora, gatos assanhados me assustem se eu lá consigo coçar-me em andamento; e coçar-me enquanto a minha melhor amiga me diz algo importante é, no mínimo, desrespeitador. E tudo o que a Dida diz é importante.
Caminhar e conversar são as nossas actividades preferidas.

— Detesto que, de repente, seja tudo novo - dizia-me ela. — Faria algum sentido que esta árvore fosse nova e que eu ainda não a conhecesse, que não soubesse que flores dá na primavera, se as folhas lhe caem todas no outono, se é árvore de frutos, que bichos vivem nela... e em que ramos posso pendurar-me? É uma questão de segurança, não achas, Narrador? A novidade é uma coisa muito perigosa.

Então, sentou-se ao meu lado, de pernas cruzadas, como o fizera tantas outras vezes, e tirou do bolso um pequeno bloco de notas e uma ponta de lápis de carvão (como o fizera tantas outras vezes).

Enquanto ela rabisca, eu entretenho-me a bocejar ou a seguir os insectos industriosos que por ali vivem as suas vidinhas. Naquele dia, acompanhei um carreiro de formigas que se dirigia à nossa árvore. As formigas são bichinhos muito curiosos, sempre sérias e compenetradas nas suas missões. Achei-lhes tanta graça que resolvi dar-lhes uma grande lambidela, e depois continuei a achar-lhes graça enquanto me faziam cócegas na língua e no céu-da-boca, e depois, ora, acabei por engoli-las sem querer. Mas tenho a certeza de que não ficaram zangadas comigo por muito tempo, afinal encontraram uma bela pratada de arroz com carne na minha barriga, devem ter feito um banquete.

Bem, mas quanto ao assunto que temos de momento em discussão: do meu ponto de vista, sendo que continuaremos juntos e que  continuaremos a poder  caminhar e conversar  tanto quanto nos apeteça, não tenho grandes inconvenientes a apontar à tal mudança. Certo, eu compreendo que o mundo da Dida seja um pouco mais complexo do que isto, que haja muitos mais factores envolvidos no ponto de vista dela, e que (admito-o sem qualquer ressentimento) haja muito mais na vida dela para além de mim.
Ainda assim, se vamos começar de novo, se vamos mudar-nos para um lugar desconhecido, moscas molengonas me atazanem o juízo se a companhia do nosso melhor amigo não é uma bela ajuda!

— Não é ainda a questão da mudança que me preocupa. Lá chegaremos. É a questão da palavra MUDANÇA. Tenho de retirar esta dança daqui para poder analisar o problema com clareza, é demasiada distracção.

Tem graça, a ideia de uma dança de mudar. Será que foi assim que nasceu esta palavra, terá alguém decidido que mudar era uma coisa divertida e que valia a pena dançá-la? De facto, uma boa coreografia seria capaz de aligeirar bastante a árdua tarefa de empacotar e carregar, carregar e desempacotar...


Mas qualquer hipótese de apresentar esta teoria à Dida cai por terra mal vejo como escreve e risca e volta a escrever, de sobrolho franzido e aquela expressão de missão-em-curso-e-que-nem-vos-passe-pela-cabeça-interferir.

— Ora bem, a acção aqui em causa é MUDAR. É o verbo, lembras-te, Narrador? O verbo é MUDAR e isso não mudo. Ah, ah, ah, ah, ah! — A Dida ri sempre com genuíno prazer das suas próprias piadas. As suas gargalhadas têm muita graça e eu também rio, sempre, mesmo que não tenha percebido a piada propriamente dita. — A acção de mudar bem que se poderia chamar MUDAÇÃO. Claro, eficaz e sem distracções. Mas ainda não é bem isto que eu procuro...

Antes mesmo de ir para a escola, já a minha amiguinha dava mostras de grande desenvoltura nesta arte de inventar palavras: no fundo, sempre levou muito a sério aquilo que tinha para dizer e nunca deixou que o esparso vocabulário da tenra idade a atrapalhasse.
Desde que foi para a escola que é isto: de lápis em punho, a Dida vive determinada a mudar o mundo uma palavra de cada vez. Se precisa de uma palavra nova, açaimes me apertem se ela não a inventa; e se as palavras que existem não a satisfazem, galos cantores me acordem da sesta se ela não as reinventa. Tudo em prol da clareza.

— Procuro a palavra exacta que diga aquilo que a mudança é para mim. O que esta mudança, em concreto, representa para mim, neste momento. Já viste o que seria se eu conseguisse resumir tanta informação numa só palavra? É uma tarefa ambiciosa, eu sei. Mas acredito que sou capaz de lá chegar. Basta-me pensar, pensar muito bem.

De repente, vejo a Dida desviar o olhar do bloco de notas e erguê-lo para o céu. Faço o mesmo para tentar perceber o que será que a distrai, mas não vejo nada de extraordinário. Os ramos e a copa da nossa árvore são banais; o mesmo digo acerca do céu azul estendido em fundo, e ainda daquele passareco irrequieto que está a voar para a frente e para trás, para trás e para a frente, como se estivesse a tecer um tapete voador invisível... Afinal, acho-o irritante e resolvo ladrar-lhe. Uof!

— Shhh! Quieto! Observa e não faças barulho. Sabes que pássaro é aquele, Narrador? É um melro. São muito interessantes. Aliás, — e volta a guardar o bloco de notas e o lápis no bolso, posicionando-se de forma a obter uma perspectiva mais desimpedida sobre o voo monótono — interessantes e bastante adequados ao meu problema. Deixa-me cá ver o que anda este melro a tramar. — Olha para mim, a adivinhar o meu desinteresse. — Ver com atenção, muita atenção, o que se passa à nossa volta, Narrador, é outra ferramenta poderosa para resolver problemas.

Como se eu não o soubesse!  Eu sou um animal, é isso que nós fazemos para nos desenvencilharmos ao longo da vida e dos seus desafios. Se bem que, na verdade... os animais domésticos, como eu, têm a vida um bocadinho facilitada... Ora, pulgas me piquem se aprender a lidar com os humanos não é um desafio portentoso! É, sim, e ver com atenção como eles se comportam é meio caminho andado para evitarmos meter a pata na poça. Dentro do possível, pelo menos.

— Sabes que o melro, o melro-preto, também tem andado em mudanças? — Pelo ar da Dida, antevejo um rol de factos. Muito gosta esta miúda de factos. E muito tenho eu aprendido com esta miúda. — Era uma ave do campo, mas agora já é muito comum nas cidades. Consta que fogem do campo por causa dos caçadores, mas também dos agricultores, que não gostam nada que lhes estraguem as culturas. Aqui, na cidade, vê lá tu, sentem-se mais seguros e até se aproximam das pessoas como nunca o haviam feito. — E depois, como se nada fosse... — Eu tenho um amigo melro-preto, costuma vir cantar para o parapeito da janela do meu quarto ao fim da tarde. É um canto muito bonito. E ele não tem medo de mim, desde que eu fique do lado de lá do vidro.

Mau, mau! Um amigo melro-preto? Mas que história vem a ser esta? Esse passaruncho de bico amarelo lá tem categoria para ser amigo da minha amiga? E que companhia é que ele lhe faz, a chinfrinar-lhe à janela? Essa agora, mil dias sem biscoitos antes de eu partilhar a minha Dida com um tecedor de tapetes voadores invisíveis que nem lhe servem para nada, se ele tem as suas próprias asas para voar! Ah, passarinho irritante e tolo, se eu estivesse no teu lugar voltava já para o campo, antes que te aproximes demasiado aqui das minhas patas e...

— Narrador!

Exagerei, não foi? Às vezes não consigo evitá-lo, o meu sentido protector incha como uma ferroada de uma abelha na bochecha e já não consigo ver mais nada a não ser a necessidade de lutar pela Dida. Mas depois passa.
Largo a pose de ataque iminente e volto a acomodar-me ao lado dela, cabisbaixo, na expectativa de que me perdoe depressa para que retomemos a nossa conversa (queria ver-te a ter conversas destas com a Dida, ó...)

— Cão pateta! Não te distraias para que eu não me distraia também. Ainda há muito a fazer. Ainda tenho, aliás, de falar-te numa coisa magnífica que o melro-preto cantador dos fins de tarde faz, sempre que aterra no parapeito da janela do meu quarto. Primeiro, fica uns tempos a voar, para trás e para a frente, tal como aquele ali em cima. E depois, suponho que assim que encontre o ângulo certo para pousar... Olha, olha, vê com os teus próprios olhos!

O passaroco aproximou-se da árvore, deu mais uma ou duas voltas e, de repente, muito de repente, assentou as duas minúsculas patas num ramo fino. Logo de seguida, como se tudo isto constituísse um único movimento, inclinou-se para a frente, perdendo o equilíbrio (ou assim me pareceu, não que eu o desejasse, juro que não) e ergueu as penas traseiras, um pequeno leque negro, em jeito de aspirante a pavão. O leque pareceu estabilizá-lo e endireitou-se (se é que se tratava de uma questão de necessidade e não de um mero artifício, uma exibição, com os pássaros nunca se sabe).


— Viste bem? Era mesmo isto que eu te ia descrever. Não é brilhante? É a manobra perfeita, Narrador. Com esta capacidade de se equilibrar, o melro-preto consegue pousar em qualquer superfície. Consegue, até, adaptar-se à cidade tão bem quanto ao campo. Aquele leque de penas permite-lhe manter-se de pé, mude o que mudar.

Pffff! Agora tenho a certeza absoluta de que se trata apenas de um truque para dar nas vistas!

— Bem, mas eu não tenho penas no rabo. — Hum? — Sou obrigada a encontrar outra forma de assumir o controlo das minhas aterragens. — Será que me distraí outra vez? — O controlo daquilo que acontece. — Ah! — Não existe, sabes, Narrador? É impossível controlar aquilo que acontece. Há sempre qualquer coisa que não esperávamos e que baralha tudo. Não gosto nada de baralhações. E o que é a mudança senão isso? Baralhar tudo? Livra, que esta mania das coisas novas não faz sentido nenhum!

Vou tentando não perder o fio à meada, mas não é fácil. Acontece-me muitas vezes, no decurso das nossas conversas, mas já aprendi a não desanimar. Isto de a Dida ser a minha melhor amiga e partilhar tudo, absolutamente tudo comigo, tem o seu quê: é que eu assisto ao desenrolar dos seus raciocínios ao vivo, em primeira mão, e raciocínio que se preze dá voltas e inversões e trambolhões que se farta até chegar a uma conclusão que lhe sirva.

— Já as palavras novas, isso é uma coisa completamente diferente. Uma consequência, até. — Pausa. Volta a tirar o bloco e o lápis do bolso. — Controlar as palavras através das quais eu penso e organizo o meu mundo é o meu truque. Os humanos são cheios de truques, não são, Narrador? Devemos parecer-te uns animais muito estranhos... — Ah, sem dúvida! — Parece que estamos sempre a navegar em mares revoltos e que temos de ter à mão os mais variados salva-vidas para nos sentirmos seguros.

Alguns de nós, pelo menos. Porque eu sempre achei intrigante a forma como a mãe da Dida parece não temer nada e não se deixar desanimar por nada. A Dona Mãe tem sempre um sorriso e palavras sábias para nós, quer estejamos preocupados com um trabalho de casa difícil ou tenhamos enfiado um espinho na pata. Quer-nos parecer, à Dida e a mim, que ela tem resposta para tudo e conhece a solução para todos os problemas — por mais espinhosos que possam ser. Bem, eu não hesito em correr para ela sempre que me vejo atrapalhado com alguma coisa. Mas a Dida, ultimamente, desde que se parece menos com uma menina pequenina e se começa a parecer mais com uma rapariguinha crescidinha, age de forma diferente, menos impulsiva, e procura sempre analisar qualquer que seja a questão de todos os ângulos possíveis, ponderar bem as implicações do problema em causa, imaginar diferentes cenários com vista à sua solução, e só depois aborda a mãe. Acho que é a isto que os humanos chamam de maturidade. É um processo lento, mas eles têm tempo para a lentidão.

— Então, recapitulemos: preciso de encontrar um leque de penas pretas adequado ao rabo do verbo mudar. — Ora, lá vem a conversa do passarito outra vez! — Algo que lhe dê equilíbrio, estabilidade e, claro, uma certa beleza. A beleza também é importante nas palavras, não achas, Narrador? — Nisto, tira um gancho do bolso e usa-o para prender os cabelos que teimam em cair-lhe sobre o rosto. — Uma palavra pode ser muito útil mas hesitaremos sempre em usá-la se for feia. Olha, como os ganchos para o cabelo. — Disso eu não percebo nada, desculpa, Dida, um gancho é um gancho e uma palavra é uma palavra, ponto final. Mas admito que a estética não seja o meu forte. — Sabes como é que se chama o rabo das palavras, Narrador? - Eu nem sabia que as palavras têm rabo! — Sufixo. — Santinha!

Dou mais umas voltas sobre o mesmo lugar à procura de uma posição confortável. Quer-me parecer que temos tarefa para algum tempo. E se eu ficar com fome, entretanto? Esse sufixo será coisa de comer? Hum... não me parece, tudo o que tem a ver com palavras é sempre muito pouco substancial!

— Pára quieto, o que é que se passa? Não me digas que já estás a pensar em comida, seu glutão! Sossega que ainda passamos no pão quente antes de voltarmos para casa.

Ah, pão quente...  Afinal é capaz de haver qualquer coisa que mastigar nestas duas palavras, qualquer coisa que cheirar, qualquer coisa por que salivar...

— Shhh! Deixa-me pensar. O que é que esta mudança é? Um transtorno, uma trabalheira, uma canseira só de imaginar-nos de casa às costas e depois, e depois, tudo novo! Narrador, — interrompo a mastigação — por quanto tempo achas que as coisas são novas?

Boa pergunta, miúda. Suponho que dependa bastante das coisas de que estamos a falar. Por exemplo, um gelado: é novo no momento em que te chega às mãos, mas tens de comê-lo depressa porque envelhece num instante e pinga o chão todo — não tenho nada contra isso, adoro lamber pingos de gelado do chão. A não ser que estejamos na praia, experimentei uma vez e fiquei com a língua cheia de areia, blargh, uma porcaria pegada!

— Novo, no sentido de nos ser ainda estranho, percebes? Quando conhecemos uma pessoa pela primeira vez, quanto tempo demoramos a habituarmo-nos a ela, a perdermos o medo de que nos desiluda, a torná-la um pouco nossa (e a tornarmo-nos, também, um pouco dela)?

Agora a máquina está em pleno funcionamento. A Dida encosta-se a mim e fica a contemplar o céu, em silêncio, durante alguns minutos. Se a cabeça dela fosse transparente, poderíamos ver o seu cérebro transformado numa encantadora geringonça, com rodas e cabos e prensas e manivelas, uma intrincada rede de processos completamente dedicada a chegar a uma conclusão. Eu podia aproveitar esta pausa para me coçar, ui, bem me apetecia, mas pinças de caranguejo se me prendam ao rabo se eu ouso mexer um pêlo que seja.

— Sabes, por mais que deteste a palavra fase, no fundo é isso mesmo de que se trata. Tudo são fases, umas atrás das outras. E mudar não é mais do que começar uma fase nova. Vou deixar de dizer  fase.  Saltos.  Estás a ver, Narrador, como no atletismo! — Hum? — Imagina que a nossa vida é uma longa pista, com alguns obstáculos e caixas de areia no caminho. Temos de saltar para ultrapassar os obstáculos; e temos de dar uns saltos de preparação para o grande salto que, se tudo correr bem, nos permitirá alcançar uma boa marca na caixa de areia.

De repente, senta-se. Ah, que alívio, coço-me muito depressa antes que...

— Cada salto é uma mudança! E, quando aterramos, aquele período entre o primeiro contacto dos nossos pés com o chão e a recuperação completa do equilíbrio é o tempo que dura o novo! — Ai, ai, ai, cheira-me que vem aí outra vez a conversa do... — Tal como o melro-preto! — Pois, estava-se mesmo a ver... - Repara, o melro pousa as patas e a situação é-lhe estranha, mas aquele truque de inclinar-se para a frente e abrir um leque de penas traseiro dá-lhe tempo para explorar a novidade. Quando recupera o equilíbrio, aquele pouso já não é novo. Já é dele.

Levanta-se e começa a andar de um lado para o outro. Eu levanto-me logo de seguida, prontíssimo para começar a dirigir-me ao pão quente. Mas afinal ainda não é desta. A Dida empunha o lápis, olha para mim muito fixamente, com aquele brilho nos olhos de missão-quase-cumprida-e-nem-ousem-atrapalhar, e diz:

— Não é a palavra MUDANÇA que diz o que eu quero dizer. É a palavra MUDASSALTO. — E escreve. — Espera-nos um MUDASSALTO muito alto. Mas o tempo durante o qual as coisas serão novas dependerá da nossa capacidade de recuperar o equilíbrio. — Volta a olhar para mim. — Só precisamos de encontrar o nosso leque de penas pretas e tudo correrá bem. — Sorri. — Tudo correrá bem, Narrador! Anda! Temos de contar à mãe! — Uof! — Sim, sim, eu não me esqueci, vamos passar primeiro no pão quente. E o último a chegar é um pão bolorento!


Fingimos fazer uma corrida até à padaria (ambos sabemos que a Dida não teria hipótese contra mim) e depois caminhamos lentamente até casa, a saborear o delicioso pão quente e a igualmente deliciosa sensação de problema resolvido. A Dida mastiga com meio sorriso desenhado na boca e eu mastigo a espreitá-la pelo canto do olho. E a abanar a cauda.

Porque o que eu adoro mesmo, mesmo, mais do que comer pão quente e lamber pingos de gelado do chão, mais ainda do que coçar-me, é ver a minha miúda feliz.

Palavra de cão.



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