Andreia Tibério: mudar as palavras, mudar o mundo

{Desafio de segunda-feira, 30 de Março de 2020}


mudar as palavras, mudar o mundo

Há desafios que pedem a colaboração de outros, porque a cumplicidade linguística assenta melhor quando em vez de uma pessoa são quatro a lançar palavras.

Na mesa redonda da varanda da cozinha, entre pratos com poucos restos de comida, talheres traçados e copos com pouca água e nenhum vinho, a mãe fala aos filhos Matilde, Margarida e Vasco; dizendo que talvez o mundo anda como anda porque as palavras fazem o mundo assim andar.

O silêncio escuta-se porquanto este comentário veio do nada. Apesar de já estarem habituados a que a mãe lance frases sem filtro, apresentando-as tal qual lhe assomam na mente, existe um instante de reflexão ao qual, uns quantos segundos passados, se fez ouvir a primeira voz que sempre que fica a matutar em algo que ouve pergunta “como assim?”.

A mãe olha o seu príncipe de 7 anos e responde - Pergunto “se pudessem mudar o mundo mudando palavras, por que palavras começariam?”

Um chorrilho de vocábulos soltou-se da boca daqueles três. De tal forma sobrepuseram as vozes uns aos outros que o que a mãe ouviu (para além da gritaria) foi algo como “dãoganporlurestidomento”.

Parou tudo! À volta da mesa redonda não há cabeceira que mostre quem manda, mas o olhar da mãe a transitar de filho em filho faz valer a sua posição. Haja ordem, fala cada um à vez. Quem começa?

Pedra, papel ou tesoura!
Pedra, papel ou tesoura!
Pedra, papel ou tesoura!

Tal como a Dida, da história da Ana Marta, também o Vasco inventa palavras, desmembrando-as e juntando-as umas às outras conjugando significados. E ri-se também, mesmo que mais ninguém o faça.

Mas a mãe não quer que se inventem palavras, quer que pensem quais as que poderiam desaparecer; pesando ainda que há palavras que têm outras palavras que são boas e palavras há que se lhes retirando parte podem passar a fazer o bem.

O Vasco, como é habitual, lança maravilhas e saem-lhe da boca as palavras "decompor", "lutar" e "arrogância". Di-las baixinho, não vá alguém ouvir. Mas ouviu-se e por isso esclareceu que se ao "decompor" tirarmos o “compor” podemos fazer música. Podemos ainda pegar no “ar” de “lutar” e aproveitar para respirar. Quanto à arrogância, é mesmo para eliminar, porque rima com ganância, uma palavra que o Vasco não conhece muito bem, mas que ouviu por diversas vezes a mãe dizer que era “uma coisa feia”!

A Margarida, que dramatiza tudo o que diz, acrescentando movimentos, expressões e sons para enfatizar o diálogo, apresenta aos restantes a "solidão" e "falsidade". Diz a Margarida que recortava o “sol” da ‘solidão’ e o lançava ao céu; agarrava na “idade” da ‘falsidade’ e soprava as velas de um qualquer bolo de aniversário.

A Matilde olha em redor para criar o habitual suspense; confiante diz "desflorestação" e de imediato explica que daqui há que gozar da “florestação”. Tem ainda outra. Olhando o resto da trupe anuncia calmamente "men-ti-ra", três silabas! Nesta, pega na “ira” que é um pouco de duas das silabas, mistura as letras e diz ironicamente e com um sorriso doce “ria minha mãe, ria para não chorar!”

A mãe, para não chorar, diz que quer que desapareça a palavra "esquecimento" que daqui a única coisa que se aproveita é o “cimento” que serve para construir paredes que afastam as pessoas.

Andreia Tibério

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