{Desafio da semana — 27 de Janeiro de 2021}
Imagem: Yuri_Arcurs / Getty Images
Um diálogo adiado
Esperava-os o prato de vinil de cor escura, sobre o qual uma agulha circulava,
impedindo-os de pensar um pouco mais do que no desejo que tinham um do outro.
A poucas horas da celebração do seu matrimónio, Adolph, que desejava
preparar sem o mínimo erro a sua noite de núpcias, ainda teve tempo para ir à
gaveta da sua secretária e remexer os papéis enfeixados com as dezenas de
canetas sem tinta que ele guardava por apego, à espera de que o tempo lhe
permitisse uma vaga para arrumá-los. Contactou o Gerente da Estalagem, um
edifício construído no século XVII, situado junto ao rio Tamisa, e relembrou-lhe o que tinham combinado uns
dias antes, reforçando a importância de colocarem na suite nupcial o disco de
vinil com a melodia que o havia aproximado da sua nova esposa, e que haveria de
ser reproduzido no momento em que a Emilly entrasse no quarto, aposento que
melhor se adequava a ela, trajada com um vestido de cor branca, comprido e
rodado, que se arrastava pelo empedrado acinzentado da entrada principal,
ornamentado com um bordado floral também ele branco, e — o que mais Adolph
apreciava — mostrando a sua pele jovem e sedosa tal como ele sempre a imaginou,
e escondendo os seus braços delicados, aconchegados nas sedosas luvas
acetinadas que lhe ultrapassavam o cotovelo, e sustentando os pés nuns sapatos
de salto alto que espreitavam por baixo do vestido quando Emilly o segurava
para não tropeçar nele, e iniciando assim a sua primeira noite de núpcias com
Adolph, um jovem adulto, recém-licenciado, proveniente de uma classe social
inferior à dela, mas com os requisitos que Emilly apreciava num homem. Uma
dúvida, porém, estimulava os seus receios, fazendo-a estremecer e mergulhar-se
em perguntas, até então sem resposta. Ela nunca tinha sentido o calor de
Adolph. Deitar-se-ia, naquela noite, junto dele, e sentir-lhe-ia pela primeira
vez o odor que emanaria do seu corpo; um corpo de ombros estreitos e quadril
largo, que, durante o ano em que partilharam momentos, nunca fora dela.
Emilly, educada por uma família conservadora, tinha um aspecto físico que a
fazia diferenciar-se da jovialidade de Adolph. Era uma mulher madura, e isto
sentia-se até na sua aparência. Conheceu Adolph, a pessoa que o destino lhe
reservou para amar, num passeio de barco que fizera com um grupo de outros
ingleses, entre Westminster e Greenwich, e onde passariam parte do dia em
convívio, tendo o grupo em comum o facto de estarem ligados profissionalmente a
uma multinacional, onde trabalhavam em filiais localizadas em espaços físicos
distintos. Sem que nunca se tivessem cruzado, Adolph e Emilly eram colegas de
profissão na mesma empresa, sendo em ambiente fluvial e enquanto o cocktail
decorria, pela hora do pôr-do-sol, que Adolph, apressando-se para não perder a
oportunidade de se livrar do copo que o dificultava na iniciativa de convidar
Emilly para dançar ao som da banda sonora do recém estreado Love Story, e
cantada pela voz considerada «tesouro nacional» de Andy Williams, da
década de 70, pousou o flute, contendo o champanhe Veuve Clicquot Brut e
ainda à espera de ser bebido, na bandeja do empregado que entretanto passava
entre uma aglomeração de colegas bem dispostos, e antes que a música terminasse
e esvaziasse o estímulo que o empurrava a quebrar os obstáculos que
habitualmente tinha e que o privava de ter uma relação a dois.
Com alguma dificuldade em mostrar emoções mais íntimas, e em manter
contactos físicos, Adolph, que também tivera uma formação conservadora, ao
estilo britânico tradicionalista, iniciou a viagem com Emilly a seu lado,
estreando o automóvel da marca Aston Martin DB5 que tinha adquirido com o
dinheiro que ganhou ao longo do seu primeiro ano de trabalho, como arquitecto.
Conduziu-o com a firmeza de quem dava valor às libras gastas na aquisição do
carro em segunda mão, comprado a um colega mais velho e financeiramente mais
estável. Centrados na noite que os esperava, falaram sobretudo da festa e dos
convidados que tinham deixado para trás nas suas vidas, já que o único
interesse que lhes suscitava eram os momentos futuros.
— O matrimónio representa rupturas na vida de um casal? — questionou Emilly,
pensando na casa e na família de quem sentia ter-se despedido para sempre.
— Etapas, sobretudo! — respondeu Adolph sem hesitação, e fazendo Emilly
sentir-se totalmente necessária na vida dele.
«Fazemos parte integrante da etapa e seremos os personagens principais
deste novo percurso!», pensava ela enquanto abria a mala que segurava na mão
direita, e de onde retirava um papel onde constava o endereço que lhes
confirmaria se eles já estariam a chegar à localidade onde se localizava a
hospedagem, e onde terminariam o seu dia, o que veio a confirmar-se quando se
aperceberam de que já teriam entrado num bosque, onde a Estalagem se inseria,
repleto de árvores e flores das mais variadas nuances. Os jardins cuidados
circundavam o Hotel, e ostentavam canteiros de flores, arbustos, plantas, e um
arvoredo a perder-se no infinito junto ao rio que suportava toda esta vegetação
luxuriante e densa, em harmonia com a arquitectura do edifício, deixando-os
impávidos perante tanta beleza. Permaneceram algum tempo dentro do carro, até
se decidirem a entrar no salão onde iriam fazer o check-in, para
poderem observar as esculturas que se posicionavam lateralmente ao longo da
estrada de acesso à porta principal, onde, devidamente trajado, com um fato
azul, uma camisa branca, um colete e uma gravata cinzenta, e devidamente
identificado, o concierge lhes abriu a porta, que estava
escrupulosamente transparente, e os recebeu com um compromisso de quem
prestaria todo o atendimento necessário para que se sentissem bem na sua estada.
Empenhado nas suas funções, e reforçando-as em ocasiões especiais, Thomas
Robert, o Maître de Maison da Estalagem, ofereceu-lhes à
chegada um ramo de flores, causando satisfação e uma boa impressão a Emilly,
que apreciava o gesto e o cheiro que as flores exalavam. Ela agradeceu-lhe com
um simpático sorriso, mas manifestando interesse em conhecer a suite onde o
casal iria jantar e ter a sua primeira noite de núpcias. O corredor de acesso à
suite mantinha a decoração faustosa da Estalagem. Optaram por utilizar as
escadas para apreciar os grandes quadros de pintura emoldurados em madeira
dourada que cobriam as paredes revestidas a madeira pintada de vermelho escuro,
assim como os corrimãos esculpidos onde, em cada patamar, assentavam esculturas
também em madeira com a mesma cor das paredes, e os esplêndidos tapetes persas
que silenciavam o ranger da madeira antiga que ainda permanecia no edifício.
O quarto ficava ao fundo do corredor. Emilly admirava os pormenores da
opulenta decoração, e alternadamente olhava para Adolph pensando que lhe
transmitia a necessidade de se apressarem para que ela chegasse ao quarto com
mais rapidez e pudesse descalçar os sapatos de salto alto que lhe magoavam os
pés desde que tinha subido ao altar da igreja. Por ser o quarto com a área
maior, ou talvez para que os outros hóspedes não incomodassem ao passarem junto
da porta, situava-se ao fundo do corredor. Ao abri-la, surpreenderam-se, tal
era a sumptuosa decoração que lhes aformoseava os momentos que se seguiriam, e
ouviu-se o suspiro de Emilly, que conseguia finalmente confortar-se esticando
os dedos dos seus dois pés, e sentir-se rejuvenescida para iniciar o jantar que
se seguiria, na varanda envidraçada que precedia outra, aberta, e de onde se
avistava o jardim, as cascatas de água, o bosque e, aquilo que eles mais
desejavam, o silêncio da noite. O Maître de
Maison deixou-os, após se ter beirado do gira-discos que estava colocado à
direita da porta e ter dado início à música que Adolph tinha pedido para ser
escutada quando Emilly chegasse ao quarto. Os versos soavam no espaço e
atentamente ela assimilava-os, num fôlego silencioso, e pensava em como a sua
relação com Adolph cabia na letra simples de uma música. Pegou nas mãos dele,
abraçou-o e sussurrou-lhe:
— «Where do
I begin to tell the story of how great a love can be? The sweet love story that
is older than the sea. The simple truth about the love she brings to me. Where
do I start?»
O jantar foi servido pelos empregados mais experientes do hotel para que
aquele intervalo de tempo entre a chegada ao quarto e a madrugada fosse ímpar.
Com o boton crachá em latão, fixo na lapela, identificando o
nome do sommelier, Anthony Brown entrou na sala de jantar privada e
aconselhou o casal na escolha do vinho para a noite mais especial das suas
vidas, ao que prontamente Adolph e Emilly aceitaram a sugestão do qualificado
funcionário. Seguiu-se a escolha dos pratos, sugeridos pelo empregado de mesa,
que se ajeitava a cada segundo para que a sua postura transmitisse mais
profissionalismo, e antecedendo a ocasião em que finalmente eles voltariam a
estar sós. Inevitavelmente, sentiram vontade de conversar intimamente enquanto
trocavam gestos de carinho, que evidenciavam a avidez pela descoberta do que se
seguiria.
Saboreando em pequenos pedaços o tenderloin steak, que, apenas
pelo aspecto em que estavam dispostos no prato de louça inglesa, já aumentava o
apetite do casal, exaustos pelo longo dia que tiveram, talvez o mais extenso
das suas vidas, Emilly, que normalmente era quem iniciava os diálogos que tinha
com Adolph, e depois de pousar com elegância e em paralelo os talheres dourados
sobre o prato quase vazio, sentiu vontade de lhe transmitir o quanto o amava:
—
«How long does it last? Can love be
measured by the hours in a day? I have no answers now but this much i can say I
know I'll need [him] till the stars all burn away. And [he]'ll be there.»
Adolph, que também já tinha terminado o prato principal, levantou-se e, sem que nenhum diálogo pudesse dar resposta às
perguntas feitas por Emilly, saiu da mesa, pegou no telefone que estava na sala
de estar da suite e, agradecendo o jantar, pediu para que este fosse terminado
no dia seguinte ao pequeno-almoço, que iniciaria com a sobremesa que acabara
por não ser degustada naquela noite, uma noite com poucas palavras e repleta de
amor.
Cármen B. Mendes
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