Patrícia Soler: Badalar a cada dia

{Desafio da semana — 19 de Junho de 2020


Methodist Church Tower, Edwar Hopper


Badalar a cada dia


Ressoa o som do sino por toda a aldeia. O povo ainda dorme. Enxergam-se os primeiros raios de sol a banhar a planície.
Do alto da torre da igreja, mira tudo e todos, sem opinar nem julgar. É apenas observador. Atento a cada riso, cada lágrima, cada correria ou atraso, cada grito…
O tempo, para ele, passa lentamente, minuto a minuto, hora a hora, e um dia de cada vez. Sem pressas. Não é assim que deve ser?
Mais cinco minutos, e deve cruzar o largo, na sua mota, Luís. Segue a caminho de mais uma jornada nas obras, longe da aldeia.
D. Arminda já se prepara para ir comprar pão fresquinho para os netos, antes de abalarem para a escola. Depois de a filha ter regressado a sua casa, incumbiu-se dessa tarefa de ser novamente mãe e avó presente.
Abrem-se as portas do café, limpam-se as ruas, destapam-se as janelas das casas. É preciso deixar o sol entrar.
Mais um dia do ano, a correr, nem depressa nem devagar. É o que é. Tempo.
Miguel já está na porta a despedir-se de Mariana. Ela para o escritório e ele para a fábrica. E mais um dia.
Lá do alto, contempla o ir e vir das gentes, o abrir e fechar das portas, o cheiro a pão fresco, os miúdos a brincar no recreio da escola.
Vê o tempo que cruza cada minuto. O seu tempo, sim, o tempo pertence-lhe. Não o pode suspender. Não quer.
Sabe o quanto Mariana gostava de interromper o tempo que voa, e dedicar-se a construir a sua família, ter muito filhos em seu redor a chamar por ela.
E Miguel que só quer que chegue Domingo, para poder ir ver a bola.
O tempo que passa, depressa e devagar, é tão distinto para cada um.
Todos procuram a felicidade no seu tempo.
Para uns, filhos, saúde, dinheiro, trabalho.
Para outros, objectivos superiores, sonhos mais altos. Voar para longe.
Ainda outros, sem objectivos nenhuns, é só deixar andar ao sabor dos dias. Lenta ou apressadamente, tanto faz. Com planos ou sem planos, pouco importa.
Cada um tem o seu tempo de felicidade, seja isso o que for.
Para Miguel, basta o seu Benfica ganhar e tem uma semana tranquila.
Mariana precisa de muito mais para se achar feliz. Precisa de tempo para amar e ser amada, para ter a sua rotina perfeita e organizada. Precisará de tempo para beijar os desejados filhos, netos. Quer largar o escritório e ser dona de si própria. Cuidar dos seus na esperança de que o destino lhe traga tudo o que sempre desejou. Quer esvoaçar para longe da aldeia e viver a vida da cidade. Como se isso fosse possível.
Miguel limita-se a acenar com a cabeça para evitar grandes celeumas. Sabe que dificilmente deixarão a aldeia. Ali é feliz. D. Arminda, depois do luto do seu companheiro de memórias, e do divórcio da filha, recuperou a rijeza, tratando dos seus netos, indo e vindo da escola, comprando chupa-chupas no café do Largo.
E lá do alto da torre da igreja, o sino toca a cada 15 minutos, recordando o passar das horas, dos dias, dos anos.
A palavra felicidade muda consoante o coração de cada um. Mais cedo ou mais tarde, vão saber que felicidade não é o destino, é apenas um ou outro momento da viagem. Porque ninguém é feliz. Porque felicidade não é alegria nem contentamento.
Nesta viagem, alguns têm mais instantes benévolos do que outros.
D. Arminda estima o amor pelos netos. Miguel, a sua rotina morta, a pacatez da aldeia. Mariana aspira a mais, quer ir, voar, e projecta as suas expectativas em outras figuras que não ela.
Mas a felicidade é o eu mais profundo de cada indivíduo, e pode ser negra e densa. Fechada e dividida.
É cada instante que valorizamos, e o peso que lhe atribuímos.
Ninguém sabe, mas Luís é feliz sozinho, a ler livros e a escrever nos seus blocos, que se tornam folhas soltas. Depois de um dia inteiro, ao sol ou ao frio, a fazer erguer uma casa, uma estalagem, uma ponte, é na sua secretária velha, herdada da mãe, que lhe corre o sangue.
Do alto da torre da igreja, mais 12 badaladas. Mais um dia.
E eles sem perceber que não somos todos felizes, e que viver é essa descoberta.
A descoberta do que somos, que nos construímos um dia de cada vez.
E confiar.

Patrícia Soler

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