Cármen B. Mendes: Os anos loucos

{Desafio da semana — 19 de Junho de 2020

Desenho de William Faulkner


Os anos loucos


Decorria a década de 1920, a família Duque, composta por vários elementos distintos, ficara eternizada por Ermelinda, uma dama charmosa e culta para a época, detentora de dotes musicais e com uma personalidade capaz de atrair todos os que com ela privassem.
Dançarina convicta, a sua rara agilidade depressa preenchia o círculo de uma pista de dança de um nobre salão, nas festas habituais que alimentavam o imaginário de muitas gerações seguintes.
Extrovertida por natureza, facilmente encetava novas relações sociais, pelo que foi numa dessas festas que conheceu Rodolfo, um mercador conhecido no meio. Vestia sempre com o mesmo estilo: fato clássico e uma gravata borboleta a completar o traje.
Ela — Ermelinda — vestia o rigor da época; os seus vestidos com franjas, adornados com penas, brilhos e jóias que se evidenciavam sobre as luvas cetinosas, sem esquecer os longos colares de pérolas que escorregavam pelos vestidos e quase se enrolavam nas pernas quando as senhoras se sentavam.
Sentia a necessidade de transformar o passado em prazeres recheados de esperança. Por isso, depois de um encontro casual, Ermelinda e Rodolfo jamais se esqueceram. Algo em comum os aproximava. Ele convidou-a para jantar num daqueles bares onde o som do jazz e das grossas vozes dos cantores fluía pelas portas das diferentes casas de diversão nocturna, numa das ruas mais badaladas de Paris, onde, também, se deglutia ao compasso dos frenéticos acordes do hot jazz, com My Honey's Loving Arms a convidar a um Charleston, a solo ou a par.
Aparentemente felizes, foram-se descobrindo. Ele, estilo burguês, com um toque de bon vivant, bem falante, focado nos pontos que achava serem o mote da conquista; ela, sedutora, firme, mas permitindo deixar-se vencer pela ousadia da feminilidade. Cavalheiro inato, apressou-se a relembrar-lhe que ela tinha escolhido um burguês, ainda por cima mercador, como companheiro para a sua noite: afastou-lhe a cadeira, esperou que ela se sentasse, ante a demora de as plumas se terem entrelaçado nos braços da cadeira, mas mantendo a postura e o sorriso, deslizou-a com delicadeza contra a mesa, para depois se juntar, de modo leve e fino, como aliás o fazia sempre. Deram início ao jantar. O garçon, ao estilo francês, acompanhou a refeição, trazendo champanhe e presenteando-os com um brinde. Brindavam à vida, após anos de ausências.
Ding dong blues preenchia os sentidos de todos os que comungavam do espaço. Embora estivessem a meio da refeição, o som deste vintage jazz fez com que Ermelinda não se contivesse e se levantasse, endireitasse os sapatos pretos, que pela altura do tacão lhe davam o estilo que pretendia ter, e, quebrando todas as regras, adiantou-se e pediu que Rodolfo a acompanhasse à pista.
Um Swing, um Charleston, um Foxtrot, uma Rumba, o importante era aproveitar os momentos, e aquele era um dos que compilaria a felicidade que ela pretendia sentir ao rodopiar sobre a sala.
Rodolfo, hesitante no início, e quase sem ter tempo para pensar, deixou-se levar. Ambos gostavam de dançar, mas desejavam sobretudo esquecer os recentes anos.
— Afinal, não podemos ser sempre infelizes! — sussurrava-lhe ao ouvido, enquanto Rodolfo pensava nos anos intermináveis de tristeza e sofrimento que tinham passado, durante a Guerra, ao que subitamente respondeu, — Nem sempre felizes! —, deixando Ermelinda ainda mais feroz no meio da pista. Ela não gostava de passados, vivia para o presente, e neste presente ela queria aproveitar o que de melhor a vida lhe trazia, pelo que prontamente se inclinou sobre ele, já que o passo da dança assim proporcionou, e exclamou: — Alguns momentos felizes podemos ser nós a escolher!
Era sua esta particularidade: contagiar quem pela vida dela passasse. Mulher positiva, altruísta, cheia de energia, transmitia aquilo que todos queriam receber, o inverso daquilo que os anos de escuridão, angustia e incerteza lhes tinha dado.
Com a sobremesa em falta, voltaram a sentar-se. Pediram o cardápio ao atento empregado, que já vinha a caminho, e decidiram partilhar a dois o fondant au chocolat. Ermelinda tinha enorme cuidado com a sua figura, mas naquele momento ela queria que a repartição simbolizasse uma aproximação a Rodolfo.
Habituada a lidar com incertezas, Ermelinda sabia que aquele seria provavelmente um único jantar que teria com Rodolfo. Amanhã, ele mudar-se-ia para Londres, em negócios, onde ficaria alguns anos.
Convencida de que a vida tem muitas histórias para se viver, algumas boas e outras tantas menos boas, nem por isso se abalou, pegou na cigarrilha, como costumava fazer a seguir a um jantar social, e calmamente escutou o Trombone Cholly, como tão bem o músico tocava. Amanhã, teria outras oportunidades e outros obstáculos para vencer. Já pela noite dentro, saíram do Clube de Jazz. Rodolfo levou Ermelinda até sua casa e despediram-se como quem nunca mais se avistaria. Brígida, irmã de Ermelinda, esperava-a em casa. Não gostava das grandes festas da época. Silenciava-se, abraçando os seus livros, que lhe davam a felicidade de que precisava. As irmãs conviviam bem com as suas diferenças.
Eram filhas de um aristocrata francês a quem a Primeira Guerra havia abalado as estruturas, mas que mantinha, contudo, uma posição social privilegiada.
Augusto Duque era um engenheiro ligado à indústria francesa, realizando importantes obras na cidade e se envolveu na política. Desejou uma educação conservadora para as filhas, mas cedo se apercebeu de que Ermelinda jamais seguiria os seus ideais, pelo que Brígida era a sua filha preferida. Ermelinda, com dificuldades em aceder à exigências morais do pai, nem por isso deixou de ter uma relação fraterna com ele. A mãe tinha-lhe sido inexistente. Nunca a conhecera, pois havia morrido no parto, e o pai nunca mais voltaria a casar.
Viviam num palacete senhorial, onde o amor maternal era substituído por um conjunto de serviços operados por empregados que, num turbilhão de tarefas, mantinham a casa palaciana como se a mãe jamais tivesse desaparecido de lá.
O engenheiro apreciava música. Sentava-se longas horas no cadeirão da sala, junto ao gramofone, ouvindo as suas composições favoritas. O jazz nunca foi o seu predilecto, embora achasse graça às novas danças modernas que a filha tão bem executava. Já não tinha idade para aprendê-las, dizia ele, quando a filha o incitava a experimentar. Preferia abeirar-se da filha mais nova e aproveitar os livros que ela deixava de ler por já os ter terminado.
À filha mais velha faltavam-lhe afinidades em família, por isso lhe eram tão desejados os salões dos Clubes.
Ermelinda não soubera de Rodolfo até à última festa que frequentara e onde ele se encontrava de novo, vestido a rigor com o habitual traje, sem esquecer a gravata borboleta. Regressado de Londres, por antever novos períodos difíceis na sua vida mercantil, tentou reencontrar Ermelinda nos locais que ela habitualmente frequentava.
Sem dificuldade em reconhecê-la, até pela forma como ela se fazia deslizar enquanto dançava, Rodolfo segui-a, tocou-lhe na mão e, sem qualquer hesitação, Ermelinda abraçou-o fortemente como se o esperasse desde o dia que ele partiu.
A Segunda Guerra tinha terminado. Decorriam os anos 50. Ermelinda olhou-se ao espelho. Sentia-se menos frenética, mas desejando ouvir os sons das músicas que a tinham conquistado nos anos loucos, por isso, deslocou-se à sua grafonola e chamou Rodolfo. Sem precisarem de dizer nada um ao outro, foram-se aproximando e, ao som de Ella Fitzgerald e de Moonray, seus passos deslizaram num ritmo de slow foxtrot. Rodolfo pensava em como Ermelinda ainda era linda, mesmo sem o seu cabelo à garçonne, sem os seus brilhantes vestidos curtos cheios de franjas e as suas meias de seda, as suas plumas e os seus longos colares. Ela mantinha aquilo que o mais tinha aproximado dela: a alegria de sentir os momentos que a faziam ser tão especial. Tinha sobrevivido à Guerra, vivido a Grande Depressão de 1929 e escapado à Segunda Guerra Mundial, mas estava ali a aproveitar mais uma peça do puzzle da sua vida, confiante em que tinham sido estes espaços de tempo, tantas vezes curtos, com que havia construído a sua ventura.
Beijou-lhe a testa e, terminando a dança com um dos seus preferidos passos do slowfox, segredou-lhe bem junto do ouvido, tal como o fazia nos salões de dança naqueles anos de grandes ilusões:
— Mais um passo, mais uma dança.
Olharam-se ao espelho. Um espelho que reflectia instantes. Era isso. A felicidade era feita de instantes. Apagaram as luzes!


Cármen B. Mendes

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