Andreia Tibério: Ao sabor dos ventos e marés

{Desafio da semana — 19 de Junho de 2020


Edgar Degas, Femme dans son bain s'épongeant la jambe

Ao sabor dos ventos e marés


Li, algures, que «A felicidade é coisa que vai e vem. Assim um pouco ao sabor dos ventos e marés».

Eugénia deu por si a pensar se conheceria alguém feliz. Enquanto o fazia, despia-se devagar no quarto e preparava-se para entrar na banheira, que já estava cheia com sais e água morna.
Apaga todas as luzes e espalha velas com um aroma que inebria.
Tem a companhia de Chet Baker com as palavras I Fall In Love Too Easily a soarem no gira-discos antigo que está em cima da cómoda do quarto.

A janela da casa de banho está posicionada por cima do néon de um hotel barato na Rua dos Lagos e as luzes intermitentes, de lâmpadas que mal funcionam, ocasionalmente entram e oferecem vislumbres de vida no exterior.
Entra na banheira, escorrega até ficar submersa e pensa que seria feliz se desaparecesse.

— Aspiro a sentir, ocasionalmente, o extraordinário.

Fica uns bons vinte e um segundos debaixo de água, enquanto a sua farta cabeleira ruiva sobe e ocupa parte do topo da espuma, como que um nenúfar laranja.

Não gostava de si assim quando era criança, mas agora o ar mais exótico garante-lhe boas conquistas ocasionais, tal qual pretende, sem compromissos, que se afastam ainda sem chegar o dia seguinte.
Imagina que talvez a felicidade seja isso, o momento em que experimenta o poder de fazer com que façam o que quer. São ápices, daí o seu estado de satisfação ser efémero e a melancolia ocupar o seu espaço maior.

«Melancholy is the happiness of being sad.»
Victor Hugo

Recorda-se de crescer com ar taciturno, diziam-lhe que Blake a consumia e a cada dia que passava assomava mais abatida. Ninguém entendia que Blake a identificava com o seu interior, que fora ele quem a conduzira a sair de casa e alugar aquele apartamento minúsculo onde tem o seu estúdio e para onde não leva ninguém, excepto ele.

A água da banheira está a ficar fria. Eugénia levanta-se e sai, agarra a toalha branca pousada sobre o pequeno banco de madeira e não apaga as velas. Por um instante pára e encara-se ao espelho; solta a toalha e dá conta de que emagreceu, os ossos evidenciam-se e aparenta-se agora com Gertie Shiele, na reprodução que tem emoldurada no chão da sala.

Caminha e no quarto pega no vestido vermelho sem alças, que contrasta com a colcha rosa e verde em cima da cama. Veste-o, calça uns sapatos rasos, agarra no xaile preto e em A Felicidade dos Tristes, abre a porta de casa.
O disco chega ao fim e ouvem-se nas escadas os passos de um homem.
«Aonde queres ir?»


Andreia Tibério

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