{Desafio da semana — 7 de Maio de 2020}
Aguarela de Justine Osborne
A história de D. Quixote
As pessoas não sabem, mas os cães
escolhem os seus protegidos. Existem os donos, e existem os protegidos. Os
donos são aqueles que nos são impostos, que não podemos escolher, como
aconteceu nos primeiros anos da minha vida. Os protegidos são os humanos que
escolhemos para proteger, acompanhar, pedir festas, são aqueles a quem
devotamos a tão afamada fidelidade canina. Depois de escolhidos, segui-los-emos
para todo o lado, protegê-los-emos contra tudo e contra todos e, se o pior vier,
descansaremos sobre as suas covas, à espera de que o nosso fenecimento também aconteça.
Eu nasci numa quinta com muitos
outros animais: galinhas, porcos, gatos e outros cães. O nosso dono era um
velho que já pouco esperava da vida, daqueles que vivem zangados com tudo: com
eles próprios, com o mundo, com a vida que tiveram, com a vida que não tiveram
e que gostariam de ter tido; dos que descarregam a sua frustração sobre os
outros, muitas vezes mais indefesos, como a mulher e o filho que há muito partiram,
abalando para longe de toda aquela miséria. E o velho afogava cada vez mais o
seu desencanto pela vida em copos com vinho traçado. Ora, quem levava, agora,
com toda aquela amargura eram os bípedes e quadrúpedes que tinham a infelicidade
de viver sobre o seu domínio. Eu era um deles. E quando sentia o bafo à
distância, misturado com o cheiro a suor, azedo de dias, já sabia que as
vergastadas seriam duras e implacáveis. Cedo adquiri um temor irrefreável ao
toque humano.
Vi a minha mãe, lentamente, com
os ossos a esticarem-lhe a pele, qual tecido gasto, a definhar de fome até
morrer. Que a comida era pouca, mal chegava para todos, e muitos, desesperados
e famintos, tentavam alcançá-la, esticando as correntes sujas e ferrugentas que
lhes estrangulavam os pescoços até à chaga, enquanto o velho ria à gargalhada,
sem pejo de mostrar a dentadura escassa e podre.
Eu sabia que estava a crescer e
que iria chegar o dia em que também seria aferrolhado com uma corrente a
apertar-me o pescoço, pisando e deitando-me nos meus próprios dejetos pela
falta de espaço.
Foi então que, numa noite escura,
sem lua no céu, aproveitei uma distração do velho, cambaleante, enquanto
vomitava o vinho do serão, à entrada da quinta. O portão ficara aberto e eu
corri, corri o mais que pude, na tentativa de me afastar de todo aquele
infortúnio, do degredo que a vida me reservara desde o útero materno.
Encontrei uma aldeia ao final de
alguns dias de vadiagem errante. Apesar de não suportar a proximidade dos humanos,
eu sabia que a minha sobrevivência estava dependente desta espécie. Houve quem
tentasse agarrar-me: chegaram numa carrinha, com instrumentos peculiares e uma
jaula de grades, mas eu dei-lhes sempre avanço, e ao final de algum tempo
desistiram, prometendo, porém, voltar noutro dia. Os habitantes começaram a
deixar-me comida aqui e ali e eu lá fui ficando.
Foi quando reparei em duas irmãs
que normalmente brincavam na estrada; uma delas, de cabelos doirados e olhos
azuis como o céu num dia de verão, cativou-me. A sua luz era brilhante,
translúcida, sedutora, ao contrário da aura negra e baça do meu antigo dono. O
seu olhar doce procurava o meu, sem rancor, nem medo, nem cobranças, e a sua
voz melodiosa e suave entrava diretamente até ao meu coração canino. Não se
afastou quando lhe arreganhei os dentes por ela tentar-me afagar o dorso, e eu
não tinha outra maneira de lhe mostrar a minha contrição por este impulso
incontrolável, a não ser por uma lambidela rápida nos meus próprios lábios e o
abanar da cauda, em tom de desculpa. Ela percebia que o fazia sem querer, e
explicava aos outros que, normalmente, me olhavam com desdém. E passou a
respeitar este meu limite.
Iniciámos uma relação de respeito mútuo pela forma de ser de cada um, e eu passei a acompanhá-la nas suas conversas ao vento, nos seus passeios, nas suas tardes de contemplação do pôr do sol, e até ficava a observá-la à distância quando brincava com outros hominídeos.
Normalmente, quando o seu corpo
pequenino, mas seguro, aparecia ao início da rua, eu, sem querer dar parte
fraca, caminhava perto, farejando qualquer pedra, pau ou erva que por ali
estava, e seguia-a a uma distância segura, como que por acaso. Ela passou a
conversar comigo, como se eu entendesse aquele mundo tão complexo de fantasia e
sonhos, e até começou a chamar-me por um nome, D. Quixote, de um cavaleiro
qualquer que conhecia.
Daí para a frente, estava
consumada a escolha: abanquei à frente da casa dela, e ai de quem passasse à
sua frente em duas ou quatro rodas e até mesmo a pé: levava sempre com uma
ladrada ameaçadora. E no caso dos motorizados, eram sempre alvo de uma
perseguição feroz, até as suas rodas, irritantes e barulhentas, desaparecerem
numa nuvem de poeira, ao fundo da rua.
Os meus dias passaram a ser uma
longa espera até ao momento em que ouvia o seu assobio, que avistava o seu
sorriso coroado pelos cabelos de oiro, e seguia ao seu lado a ouvir as suas
intermináveis conversas sobre tudo e sobre nada, ou para cima e para baixo,
quando decidia andar sobre duas rodas, girando os seus dois pezinhos em
infinitas voltas. Ao final de algum tempo já me atirava paus que eu, divertido,
corria para apanhar. Não lho levava às mãos, que estas continuavam a atemorizar-me,
mas deixava-o a uma distância curta para ela, rapidamente, o apanhar e o lançar
novamente. Entendíamo-nos assim. Éramos felizes assim.
Um dia, arrisquei chegar-me bem
juntinho a ela e ficámos sentados um ao lado do outro, a olhar o firmamento, em
silêncio. A dada altura, a menina avisou-me, imperativa, mas ao mesmo tempo com
voz doce, como que a ordenar e a perguntar ao mesmo tempo, mostrando a sua mão
a uma distância do meu focinho, «D. Quixote, vou fazer-te uma festa na cabeça»,
e eu permaneci ao seu lado, sentido o calor do seu corpo encostado ao meu, sem
saber muito bem o que aquele toque significaria, nesta altura da minha vida,
nesta altura da nossa relação. Lentamente, baixou a mão e afagou o topo da
minha cabeça, por entre as orelhas. A minha pele arrepiou-se, mas não aconteceu
mais nada, nem sobressalto, nem rosnar, nem dentes ameaçadores à mostra, e eu
senti naquele toque toda a sua ternura e amizade. Toda uma nova sensação percorreu o meu corpo, e eu percebi que o toque era também uma forma de amor.
Nessa altura, porém, já o cancro
me corroía os ossos, e as forças começavam lentamente a faltar-me. De dia para
dia, era-me cada vez mais difícil acompanhá-la nos seus passeios, mas
continuava a segui-la num passo atrasado, sofrido, claudicante. Com o tempo
deixei de aceitar a comida e, tal como acontecera com a minha mãe, os ossos
começaram a aflorar-me à pele. Ela preocupava-se:
— Talvez tenhamos de lhe dar mais
comida.
— Talvez sejam lombrigas — dizia
a mãe, enquanto olhava para mim de relance.
Mas de nada serviu, e as lágrimas
correram-lhe pela face quando me viu, um dia, prostrado, sem conseguir
levantar-me para acompanhá-la, como habitualmente.
A carrinha, por fim, voltou. A
carrinha, por fim, apanhou-me e colocou-me na jaula de grades, perante o seu
desespero, numa despedia sofrida e soluçada. E a última imagem que me ficou na
memória, antes do eterno adeus, foi da menina sentada ao meu lado, num fim de
tarde de um quente dia de verão, que me ensinou que a vida também é amor.
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