Patrícia Soler: Noah, o Caracol, e a Magnólia Negra

{Desafio da semana — 7 de Maio de 2020}


Desenho de Racheli Ben Aharon


Noah, o Caracol, e a Magnólia Negra

Magnólia abria as suas pétalas de veludo negras suavemente, aos primeiros vislumbres de claridade. Acordava e espreguiçava-se para o dia, libertando aromas suaves e deixando escorrer frescas gotas de orvalho matinais.
O jardim mantinha-se quieto e em silêncio divino.
O caracol arrastava-se na sua costumeira direção, ainda mais lento do que nos outros dias. Lento, lento, num deslizar meloso sem fim.
— Noah, estás doente?
— Sim, estou. Muito.
— O que se passa? Onde te dói?
— No coração!
— Vá lá, Noah, coragem! Queres que alguém te acuda?
— Ninguém me pode acudir... Dói demasiado .
— Noah, estás a assustar-me. Conta-me.
O caracol, ainda mais despedaçado, abeirou-se de Magnólia e desabafou.
— Desisto das pessoas, negra flor, desisto. Não quero mais, estou cansado. Vê como estou cansado.
A sua rígida concha parecia até meio desfigurada, o corpo frágil ainda mais amolecido, e Magnólia não conseguia distinguir se lhe escorriam lágrimas ou gotas de orvalho.
— As pessoas são cruéis, o seu coração é obscuro e o egoísmo consome-as. Vou-me fechar dentro da minha concha para sempre. Para sempre é muito tempo. Não quero mais. Não quero. Vou esquecer as pessoas. Desisto!
Magnólia escutou e ponderou. O que falhou na mente humana? Porque toma estes rumos? Maldade, crueldade, egoísmo. E porque usa a palavra para atacar, para magoar e desiludir, e não para apreciar e elogiar?
Noah diz que deixou de acreditar nas pessoas. Deverá ser esse o seu rumo?
Como poderá ele viver pleno, feliz, em consciência, em absoluto? Fazendo escolhas?
Sim, pode optar. Escolher o que quer para si. Melhor, melhor ainda, o que não quer para si. Todos os dias pode fazer uma escolha, porque todos os dias tem uma alternativa que o leve a viver autenticamente.
E em silêncio, este é essencial para uma tranquilidade plena e absoluta.
Só devemos falar quando permanecer calado equivale a mentir, e há mentiras que não podemos deixar calar.
O Homem pensa, mas nem sempre tenta o seu melhor para conseguir fazer  a coisa certa. Isso é trabalho de muito esforço. E escolhe o caminho mais simples possível — o de não olhar o outro.  Vê com os olhos mas não olha com o coração.
Temos o poder de abrir o nosso coração e a mente, mas isso é uma decisão nossa.
Porque não vivemos todos nesta condição da procura da verdade interior e da plenitude da consciência? Porque não tentamos um pouco todos os dias corrigir os nossos erros e procurar o caminho da fé, seja a fé o que for?
E se à tua volta não procuram o seu caminho, tu tens o direito de escolher a tua paz, a tua quietude, e de não te sentires egoísta por isso.
Podes ficar fechado dentro da tua concha e fazer dela a tua casa, caracol.
— Noah, aconchega-te. Preciso de conversar contigo.


Patrícia Soler

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