Cármen B. Mendes: O cheiro

La Grenoouillère, Pierre-Auguste Renoir

O cheiro

Habituado ao isolamento, amedrontou-se com as vozes em coro de um grupo de pessoas, apáticas ao medo.
Era o final de uma tarde ensolarada, muito quente e seca. Daqueles momentos do dia em que apetece pedir ao Supremo para que o prolongue num tempo sem fim.
Osório, era assim chamado devido a um tio, do lado da mãe, que, por ocasião do seu nascimento, e por quem nunca nutriu grande admiração, entendeu dar alguma valentia àquela criança franzina, que cumulativamente havia nascido num meio humilde, pouco favorecido e, por isso, dotado de muitas necessidades. Chamando-o Osório, pelo menos no nome, teria alguma valentia e bravura.
Durante a vida, mostrou que o nome não lhe pertencia. A fala de coragem, a timidez constante e a falta de firmeza nas suas decisões sempre o privaram de revelar-se.
Sem que ele soubesse a razão, o declínio do dia era o seu amanhecer; era o momento que mais lhe preenchia a vida de sabores.
Um estado de alma que durava alguns minutos, já que o sol deixava de ter luz e a cidade recolhia-se, como se a um mandamento obedecesse, tornando-o, por isso, melancólico.
Naquele pequeno ajuntamento humano, à borda do passeio em calçada portuguesa em tons cinza e branco, as crianças não se apercebiam da impaciência humana em lidar com a ausência de afectos, pelo que pareciam deixar claro que a vida sem relações impedia-as de crescer, privava-as de sentir e iludia-lhes a existência. Os seus gritos de felicidade eram clamores; reclamavam a esperança de um dia voltarem a ser crianças.
Indignado com a azáfama, Osório questionou-se sobre a razão para tanto alarido nestes tempos. No seu pequeno passeio diário, feito em passos curtos, quase parado, pensou na possibilidade de a humanidade ser inundada de esclarecimentos e notícias sobre cada gripe que aparecesse.
Ficaríamos todos imunes à sensibilidade ou viveríamos eternamente com os olhos fixos no temor de viver? — pensou ele, enquanto mirava outro conjunto de pessoas, em perfeita sintonia dos sentidos.
Sentiu-se só. Ainda mais do que o seu habitual. Era de poucas palavras. Normalmente, pensava mais do que falava. Sentiu uma enorme falta do cheiro dos outros. Há meses que não sentia o cheiro de gente. Subitamente, sentiu condescendência para com aquelas pessoas com quem se havia cruzado e as quais havia mentalmente censurado, momentos antes. Estavam a ser ousadas, provavelmente, porque também sentiam a falta do odor do género humano. Estavam unidas pelo cheiro de umas e de outras, rompendo com estados emocionais de ameaça.
Mas Osório, aquela criatura que havia nascido sem ânimo, continuou sem optimismo. Nunca conseguiu espantar-se com a vida. Entrou em casa, sentou-se e esperou por mais um dia igual a tantos outros.

Cármen B. Mendes

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