Cármen B. Mendes: Epaminondas, o Invencível!

{Desafio da semana — 7 de Maio de 2020}



Pintura de Symon Kaye


Epaminondas, o Invencível! 


Sem carros e sem gente, eis que me aventuro a percorrer aquele labirinto de ruas, passear por entre as árvores, fazer acrobacias e até planar junto a uma varanda, sob o olhar espantado de um humano que, ao achar-se superior, não percebe que a Natureza tem de coexistir na mesma proporção que ele, habitual detentor de todos os espaços. Certo dia, lembrei-me de que, no meu reino, queria ser eu a mandar. Fiz juras para que não caísse nessa tentação, mas, num dia de auto-exibição, reparei no olhar embevecido de uma menina que, debruçada à janela, chamava por um pássaro que resolveu pousar nas pedras brancas que revestiam o chão da marquise da casa.

Então, eu, que sou forte, corpulento, com pêlo negro e brilhante, estaria sujeito à concorrência de uma outra ave pequena e insignificante? Era desleal. Afinal, em todos os recentes dias, era eu que ia e vinha, passava rasteiro e lá ia em direcção ao rio.
Certo dia, sentindo-me cheio de vigor, decidi pousar perto da criança. Quem sabe me visse, mas, qual o meu espanto, acariciava o pássaro que, entretanto, havia adoptado. Sentindo-me triste, resolvi dar mais meia volta, passar pelo rio, pousar num ulmeiro de grande porte, avançar para um choupo e depois para um salgueiro, direccionar os meus grandes olhos sobre um coelho que, distraído, por ali passava, e pensar sobre qual o momento mais favorável para poder dar razão ao meu instinto de sobrevivência.

Distraído com as folhas de uma árvore à minha frente, e a pensar que o vento acabaria por chegar horas mais tarde, avisto um esquilo que se localizava mais perto de mim. Esqueci de imediato o coelho. A conquista seria com menos esforço. Abri as asas, levantei voo direccionado ao roedor e eis que me tornei, tal como os humanos famintos, um predador. Estava pronto para ir envaidecer-me em trajectos com voos de cima para baixo e de baixo para cima, junto à janela da pequena. Pensei que se ela me avistasse e me mirasse com mais detalhe, me achasse mais atractivo do que àquele pequeno pardal.
Fui-me aproximando. Mas ela olhou-me superficialmente. Porque não fiquei convencido, decidi voar com mais força, já que o repasto me tinha dado energias por umas boas horas. Não me cansaria com facilidade.

Decidido que estava a alcançar o pódio, comecei a aproximar-me mais uma vez, ainda com mais cuidado, mas tanto me tornei próximo que, em vez de ver o pequeno pássaro no aconchego das pequenas mãos da criança, vi que estava engaiolado, sem liberdade e à mercê da afectuosidade da pequena humana. Eu, que rivalizei com ele, senti vontade de abraçá-lo. Os seus olhos pequenos, mas cintilantes, procuraram os meus, pedindo auxílio. Aquele que era pequeno e bonito tornou-se triste, e eu arrependido de ter sido seu rival em busca de protagonismo.

Pensei na sorte que tinha, enquanto águia, por poder regressar às minhas árvores, sentir a humidade morna das noites de Verão e ouvir o som da água nos riachos; e, mais do que tudo, poder voar em liberdade por entre as folhagens daquelas imensas árvores que me acolhiam todas as noites.

Sabia, contudo, quanta companhia o pequeno pássaro faria à pequena criatura humana, que, ainda tão nova, aprendera a perdição humana, os maus costumes da sociedade, que se habituou a ter humanos que gostam de prevalecer sobre todas as outras espécies, tantas vezes por prazer e à procura de afecto e não como sobrevivência humana, usando apenas a sua inteligência. Uma inteligência predadora, diferente da instintiva.
Da janela do quarto, com o rosto encostado ao vidro, a rapariga, de tez morena e cabelo castanho, saboreava cada chilrear do seu novo amigo e pensava nas novas tarefas diárias que teria que passar a ter porcuidar dele. Seriam dias estimulantes para ela.
Sem que ela se apercebesse, fui-me afastando, à procura de outros bosques, outras árvores e outras escolhas, ao sabor do meu instinto e da minha sobrevivência natural.


Cármen B. Mendes


(Um conto com base num documentário da RTP sobre Os Bichos, de Miguel Torga, e na sequência de um desafio do Clube de Letras, sobre a relação entre o Homem e os Animais e estes e o conceito de essência, liberdade e vida.)

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