Cármen B. Mendes: O reconfortante olhar

Man in Silver Suit, de Lucian Freud

O reconfortante olhar

Sentou-se comodamente no cadeirão castanho, que havia comprado há algum tempo, para poder alternar os momentos de paz e calmaria com outros, que costumava ter, repletos de euforia.
Só conseguia ter paz num canto da varanda. No outro oposto, na gaiola, dois pássaros não passavam despercebidos a quem passava, por perto; serenavam espíritos mais agitados devido a estes tempos de intensa mudança. As flores coloridas e viçosas preenchiam os vasos de flores que se encontravam, em linha, pelo corrimão da varanda.
A janela, que dava acesso a uma sala, estava sempre aberta, indiferente à chuva e ao vento, fazendo lembrar as tardes quentes da próxima estação.
Mas, naquele fim de tarde, ele enroscou-se, ainda mais, no interior do seu ninho preferido. Sentia-se confortável, como se nada lhe pudesse acontecer. Tinha um rosto pálido que contrastava com o vermelho dos cravos; talvez por isso não abdicasse daquele canto mais perfumado para se encostar. O seu corpo esguio parecia querer padecer ao momento de angústia que o empurrava para aqueles pijamas cinzentos e escuros que vestia dia e noite.
Era com os seus pássaros, as suas flores e os seus pijamas que enfrentava tão estranha forma de vida. Ele sabia que haveria, apenas, um tempo psicológico, atemporal, emancipado do poder dos ponteiros do relógio. O cronológico ficou para trás. Lembrou-se da aula em que o seu professor de Filosofia — o único que sabia falar sem pressa — falou sobre o Chronos e o Kairós, sob o olhar patético de um conjunto de alunos que jamais entenderam para que serviria aquela distinção. Pensou que nunca experienciaria o Kairós e que, como tal, seria mais uma aula para preencher o tempo académico. Sentiu um desejo imenso de lhe poder transmitir o quanto tinha sido importante tê-lo tido como tutor.
Num dia igual a todos os outros, resolveu vestir o fato com que costumava sair. Compôs a gravata em tons azulados e colocou o boné sobre a cabeça, antes que constipasse. Era Abril e os dias ainda eram frios. Não levou a pasta, que tanto lhe conferia o estilo fleumático que o caracterizava sempre que se apresentava em público, lembrando os britânicos, naqueles dias de inverno húmidos e sombrios. Substituía-a pelo seu novo «ornamento», que havia adquirido no dia anterior e que o acompanharia durante aqueles meses que se seguiriam. Acertou os elásticos, fazendo rodar a máscara da direita para a esquerda, e ergueu-se, ainda mais, para enfrentar o mundo que o esperaria.
Olhou fixamente para alguém que passava. Apavorou-se ao pensar que só olharia para rostos fechados, mas logo descobriu que é num olhar que todas as emoções despertam.
Sentiu-se mais confortável, tanto ou mais do que quando se aninha na cadeira naquele recanto da sua varanda.

Cármen B. Mendes

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