Andreia Tibério: O diálogo das verdades dos anjos

{Desafio da semana — 27 de Abril de 2020

 Spartans' Feast: Ernest Hemingway, Gertrude Stein, James Joyce, and F. Scott Fitzgerald
De Valerie Suter

O diálogo das verdades dos anjos

só os saltos altos em toc toc repetitivo nas escadas entristecidas e turvas denunciaram a sua chegada. o negrume das paredes resulta não da tinta mas do fumo dos cigarros que por ali passam e permanecem. D movia-se em silêncio (ainda que em constante desassossego interior) e somente a vaidade do seu calçado a denunciava. O som abafado surgia mais próximo à medida que se aproximava do final dos degraus. já lá se encontravam todos, só ela desrespeitava (propositadamente) as horas acordadas para o encontro.

aquele buraco escuro assemelhava-se mais a um clube de jogo ilegal que a um lugar de rendez-vous clandestino para trocas de ideias pouco convencionais e alguma folia de cadáver esquisito.

os olhares voltaram-se e D assumiu a única cadeira livre que se encontrava entre H e A. defronta o que a rodeia e, antes de se sentar, com o dedo indicador baixa os óculos — excessivamente graduados — até à ponta do nariz. traceja um sorriso de escárnio e senta-se sem arrastar a cadeira, ostentando a tal autoproclamada subtileza!

vagarosamente, lança a capa para trás até esta assentar nas costas da cadeira, reclina-se e insinua-se, inaugurando a conversa da noite. não sem antes beber de um trago o copo de Bourbon que alguém lhe tinha deixado.

perfil [D] «… no subject is terrible if the story is true…». A frase não é minha; li-a num desses jornais literários que a moda fez proliferar e que são corridos com os olhos por esses pseudo-dândis que se dizem cerebrais… e por mim, claro!

perfil [X] a agonia da folha em branco. ando assim há meses, sem escrita. e se a história para ser boa tiver de ser verdadeira então não sei mesmo por onde começar.

perfil [H] «… um casal fumava em silencio…» ou «… aquele aroma fazia-o sempre sentir-se em casa…»

perfil [X] suposições ficcionadas de um qualquer romance. nem as posso usar porque estaria a plagiar o texto que leste antes de vires para cá!

A arrastou a cadeira de forma deliberadamente ruidosa (chamando a si o aparato), colocou ambas as mãos em cima da mesa e com um esforço evidente ergueu-se, quebrando a formalidade ao lançar-se à conversa de pé. note-se a ousadia quando, não satisfeito com a consternação alheia, intentou circular muitíssimo perto de cada um dos elementos da trupe.

A delicada figura de A, com as costas ligeiramente curvadas, o sempre presente chapéu preto (por onde escapavam uns ralos cabelos cinzentos) e a gabardine abotoada (qualquer que fosse a altura do ano) davam mais azo a troça que a pavor.

perfil [A] «… I believe that love that is true and real, creates a respite from death. All cowardice comes from not loving or not loving well, which is the same thing. And when the man who is brave and true looks death squarely in the face like some rhino hunters I know or Belmonte, who is truly brave, it is because they love with sufficient passion to push death out of their minds. Until it returns, as it does to all men. And then you must make really good love again. Think about it...»

esta verdade foi segredada de orelha em orelha, a cada um dos sentados. proferiu-a, pois, três vezes.

perfil [X] well, then one has no other way but to make constant good love… in order to get death aside for as long as possible.

uma mecha de cabelo ruivo de X escorregou para a frente dos olhos à medida que esta inclinava o rosto para baixo com o intuito de esconder o rubor que surgia nas faces, só por estar a falar em amor… e ainda omitiu a palavra sexo!

perfil [A] o amor é a resposta para tudo na vida. todas as grandes obras literárias assentam em amor. porque sem amor não haveria a intensidade dramática que se quer numa história. até as reflexões passam pelo amor. façamos um exercício, em modo de escrita automática e vejamos o que num minuto sai deste nosso subconsciente alcoolizado.

A virou a ampulheta que servia de centro de mesa e que dava ares de tempo ao percurso da noite. cada um pegou na esferográfica e folha de papel que tinha à frente e escreveu de rompante, sem pontuação, sem regras, sem qualquer cuidado de construção frásica.

perfil [X] venero demasiados homens e mulheres para saber escolher quem quero. hoje uns amanhã outros e nenhum noutros dias. o relógio dita o tempo e a minha vontade autoriza-lhes a entrada no meu quarto sem consignar o que quer que seja basta que tragam roupa para despir e mãos para me despirem a mim

perfil [H] vou a cabarés à procura do esquecimento da guerra e entro num estado puro onde Bourbon após Bourbon e mulher após mulher deixo o meu pensamento fluir sozinho ditado por não razões e sem qualquer exercício moral

perfil [A] o jazz brinda-me infindavelmente com um entorpecimento onde o som me envolve o corpo como nenhuma mulher o faz não oiço mais nada a não ser os instrumentos em eco num fundo longinquamente melódico

perfil [D] ouvi de boca segura que «… escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêssemos — só o sabemos depois — antes, é a interrogação mais perigosa que podemos fazer. Mas é também a mais corrente…»

de olhos postos uns nos outros e em uníssono numa subversão do ser do amor declaram o final.
«…PARIS NÃO SE ACABA NUNCA…»

Andreia Tibério

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