Cármen B. Mendes: Hoje é Domingo de Ramos

Ilustração de Pascal Campion

Hoje é Domingo de Ramos

Lembrei-me da infância. Daquela Festa da Páscoa que começava uma semana antes da Ressurreição de Jesus. Celebrava-se a Vida.
Tudo passava pela hora da refeição. Reuníamos-nos, religiosamente, às 13 horas da tarde. A mãe e o pai, nos topos da mesa. Eu, a mais pequena, junto da minha mãe, lado a lado com a irmã do meio, porque a mais velha marcava o seu lugar hierárquico, ficando sozinha, no lado oposto, na outra lateral da mesa.
A Páscoa vinha a caminho. Havia qualquer coisa naquele Domingo, naquela refeição, que já antecipava o Grande Dia. Na sexta-feira, sabíamos que teríamos o minuto de silêncio, às 15 horas. A Ele, a quem nos ensinaram a Amar, retiraram-lhe a Vida.
Voltaríamos a festejar no Domingo, quando Ele passasse, novamente, a fazer mais parte de nós. Teríamos sobretudo Esperança. Mas, também, teríamos amêndoas, ovos de chocolate e folares. Com ovos, engrandecia o momento da partilha. As amêndoas de chocolate eram as minhas preferidas. Acabavam rapidamente. Deveria ter aproveitado mais. Ainda há pouco pensei!
Hoje é, novamente, Domingo de Ramos. Passaram décadas. Houve almoço. Até se pensou nos ovos, nas amêndoas e no folar. A disposição da mesa é outra. Estou eu num dos topos. E sou eu quem tem que decidir sobre a refeição do Domingo seguinte. Mais do que nunca, Celebrar a Vida. Não há muito mais que nos prenda, senão isso.
Há um único carro a passar. Olho pela janela. Consigo ver a estrada; antes que a aquela construção, ali quase à minha frente, emerja. Vejo pessoas fora das suas casas. Muito poucas. Tento centrar-me em pensamentos, mas volto a olhar pela janela. O carro já deve ter chegado ao destino. Não se pode circular por aí. Avisaram-nos. A nossa liberdade física está limitada ao local de residência, talvez a um supermercado mais próximo. Para que outro local possa ele ter ido?
Ouço um bebé que chora. Quer ir à rua, penso eu. Costumava vê-lo com a mãe, passos calmos, pé ante pé, a aprender a andar.
Chove. Os montes cobrem-se de nevoeiro. Denso. Abro a janela. Com cuidado. Pode entrar água.
Distraio-me com o cheiro que vem da terra, com o canto dos pássaros. Há um corvo que passa, uma andorinha, outro pássaro qualquer. Estão livres. Voam, sem rumo.
A chuva tilinta sobre os carros estáticos. Passa mais um pássaro. Reparo que as folhas cresceram, nas árvores. Esta chuva vai ajudar. As varandas enchem-se de água. Há muita vida, lá fora. Só a Natureza se sente. Parece ser 6 da manhã. Uma alvorada permanente. Natureza, terra, animais, árvores.
Foco-me nos pássaros. Há uns que cantam mais alto do que os outros. Cantam com mais firmeza, mais pujança, mais fervor. Como nós, que aguentamos melhor — ou pior — a invisibilidade deste inimigo. Nem o vemos, sequer. Até numa guerra há um rosto visível!
Não fomos ensinados para combater. Só para Amar. Tal como me ensinaram naquele Domingo de Ramos, passado à volta da mesa, às 13 horas em ponto.

Cármen B. Mendes

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