«(...) e adormeço a imaginar com pormenor a minha saída, convicta de que a manhã seguinte será normal. Mas o dia que se segue é igual, e o dia a seguir também, e o seguinte também, e o dia a seguir a todos estes já nem é igual, é pior. Por mais preparada que me sinta na noite anterior, não consigo sair de casa; passo as manhãs a verificar tudo vezes sem conta, e acabo, derrotada, a telefonar para o laboratório, desculpando-me por não poder comparecer, ora que não me sinto bem, ora que estou quase a recuperar, ou que sofri uma recaída. Os dias sucedem-se sem mim e a ansiedade com que olho para a maçaneta da porta cresce até me paralisar por completo.»
Patrícia Portela, O Banquete
Ilustração de Susana Pallha
Os dias sucedem-se sem mim
«Medo: estado emocional resultante da consciência de perigo ou ameaça reais, hipotéticos ou imaginários.
Ausência de coragem.
Preocupação com determinado facto.»
Ligo novamente à Inês e mais uma vez fico à espera, uma eternidade, de que ela atenda. Já desisti de deixar mensagem no voicemail. Sei que não retornará a chamada.
A esta altura já não sei se lhe ligo constantemente por descargo de consciência ou se ainda espero algum milagre.
Penso na nossa amizade, que se cruza em toda a nossa existência, pois somos próximas desde que nascemos. Crescemos juntas, morámos na mesma rua, estudámos juntas. Passámos da adolescência à maturidade juntas e sinto que ela é uma parte de mim.
Dou um salto da cadeira e lembro-me de uma coisa. Claro! Como não pensei nisso antes?
«Olá, Inês,
sei que não me queres ouvir. Achas que essas paredes te protegem, que a cama é o teu melhor refúgio e que o mundo acabou. Pode ter acabado mas apenas para ti e por escolha tua.
Digo-te que cá fora está um dia azul forte, o ar quente cheira a flores e gente feliz passeia e ri. Os amores perfeitos e as camélias (as nossas preferidas) estão em flor e toda a natureza que conheces continua a fazer o maravilhoso ciclo. Só tu não vês, Inês. A escuridão dessa prisão interna não te permite ver que os dias se sucedem sem ti. Isso mesmo, toda a vida continua sem ti.
Sabes que ela não quer saber dos teus pensamentos nem dos teus piores medos. Tu és a tua própria prisão, mas isso não conta para o nascer do sol nem para o badalar do relógio.
Não são as portas fechadas que te impedem de sair, é apenas o facto de estares presa dentro de ti própria.
Sabes o que me conta cada nuvem que vai passeando pelo céu?
Que o melhor exercício é o da liberdade interior; descobre as forças que tens dentro e segue em frente. Sei que um coração despedaçado pelo amor dói, mas não haverá dor maior que o medo de respirar e continuar.
Para saíres de ti tens que fazer o mais difícil, olha bem dentro bem fundo, mergulha e volta à superfície.
Respira, acalma, confia, ganha força e avança. Voa!
Tu consegues.
Porque ainda não perdeste a capacidade de abrir os olhos, o ar bafiento ainda circula nos teus pulmões e a tua alma ainda é imensa. Tens tudo o que te permite atravessar a noite escura e regressar ao dia, porque ainda tens a esperança de que a vida tem de ser mais do que isto.
Sempre tiveste a capacidade da iluminação, da sabedoria, para saber que a vida só é digna desse nome quando está em movimento e que o mundo não depende ti, as coisas são o que são independentemente das tuas convicções. Por isso, torna-te humilde e roda a maçaneta da porta.
A vida espera-te.»
Abri o portão verde, atravessei o pequeno jardim e fiz deslizar o envelope por debaixo da porta.
Patrícia Soler
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