«(...) e adormeço a imaginar com pormenor a minha saída, convicta de que a manhã seguinte será normal. Mas o dia que se segue é igual, e o dia a seguir também, e o seguinte também, e o dia a seguir a todos estes já nem é igual, é pior. Por mais preparada que me sinta na noite anterior, não consigo sair de casa; passo as manhãs a verificar tudo vezes sem conta, e acabo, derrotada, a telefonar para o laboratório, desculpando-me por não poder comparecer, ora que não me sinto bem, ora que estou quase a recuperar, ou que sofri uma recaída. Os dias sucedem-se sem mim e a ansiedade com que olho para a maçaneta da porta cresce até me paralisar por completo.»
Patrícia Portela, O Banquete
Fotografia de Kristofer Dan-Bergman
E se eu não conseguisse sair de casa?
Há dias assim. Primeiro tudo me parece um mar de possibilidades, de novas experiências que não quero perder. Escancaro a janela e sinto a brisa suave a acordar os meus cabelos baços, a sensação quente do sol a bater-me na pele pálida, o cheiro e os sons da primavera a apurar os meus sentidos adormecidos pela falta de novos estímulos. Imagino as pessoas novas que vou conhecer, as que vou reencontrar e todas as conversas que vou partilhar. As árvores que vou admirar pelo caminho a percorrer devem estar agora com a nova folhagem verde e fresca. Tudo me trará, certamente, novas emoções, arrancar-me-á deste marasmo em que me encontro há dias, semanas, meses?
Já nem sei. As paredes encolhem de dia para dia e por isso sei que tenho de reagir. Não vou permitir que me mantenham sua refém, que me continuem a tirar o ar.
Imagino tudo o que tenho de fazer: a roupa de há dias que vou tirar do corpo, o banho que vou tomar, a roupa limpa que vou escolher e todos os passos que terei de dar até sair do prédio onde vivo. E basta isso para aquele velho cansaço se abater sobre mim, como a chama frágil de uma vela que se apaga lentamente à medida que a cera derrete, sinto o ânimo inicial a abandonar-me sem que eu nada consiga ou possa fazer.
Olho para a janela novamente e o dia, apesar do azul no céu, torna-se cinzento. As pessoas que lá fora vou encontrar parecem-me subitamente enfadonhas. Sei que não têm nada de novo para me dizer e de certeza que esperam de mim algo que não lhes consigo dar. Visualizo novamente o caminho que terei de percorrer e parece-me, agora, extenuante. Deixar-me-á exausta, tenho a certeza.
Os pássaros continuam a chilrear, alheios à minha solidão: os seus cantos são uma afronta ao meu mundo. Não suporto ouvi-los e fecho a janela. Os novos cheiros desaparecem e o ar volta a ser bafiento. A verdade é que percebi que, há muito, o mundo lá fora nada tem para me oferecer. Estas paredes são tudo o que tenho, asseguram toda a previsibilidade dos meus dias, são as minhas confidentes leais, firmes, seguras. Não vou traí-las. Mais uma vez, vou ficar.
Maria João Seixas
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