«(...) e adormeço a imaginar com pormenor a minha saída, convicta de que a manhã seguinte será normal. Mas o dia que se segue é igual, e o dia a seguir também, e o seguinte também, e o dia a seguir a todos estes já nem é igual, é pior. Por mais preparada que me sinta na noite anterior, não consigo sair de casa; passo as manhãs a verificar tudo vezes sem conta, e acabo, derrotada, a telefonar para o laboratório, desculpando-me por não poder comparecer, ora que não me sinto bem, ora que estou quase a recuperar, ou que sofri uma recaída. Os dias sucedem-se sem mim e a ansiedade com que olho para a maçaneta da porta cresce até me paralisar por completo.»
Patrícia Portela, O Banquete
E se eu não conseguisse sair de casa?
Hoje é o dia. Hoje é o dia em que finalmente vou dedicar-me um tempo só a mim: sem filhos, sem marido, sem ninguém que me peça algo ou que me chame pela enésima vez no dia. Um tempo que será só meu, fora destas paredes que por vezes parece que se abatem sobre mim, longe das inúmeras tarefas e pedidos diários que me distraem e me levam para longe de quem sou.
Tenho tudo planeado: o jantar está pronto, a roupa preparada, a casa arrumada, os TPC dos mais velhos feitos. Brinquei com a mais pequenita às casinhas e aos castelos, li várias histórias, andei com ela ao colo apoiada na minha anca esquerda enquanto cozinhava, partilhei a minha comida que faz questão que seja também para ela. Ouvi as suas gargalhadas, canções, lamentações e os seus gritos quando zangada. Dei todos os beijinhos mágicos para curar as feridas dos tombos. A palavra mãe ressoou pela casa como um toque de sirene, vezes incontáveis. Mas tenho tudo planeado: enquanto eles jantam, tomo um banho rápido, dou um jeito no cabelo e visto aquele vestido que já não uso há anos. Será que ainda me serve? Com sorte ainda consigo pôr um batom nos lábios. Será que ainda está bom para usar? Depois, sorrateiramente, saio de casa e vou até ao cinema ver um qualquer filme que esteja em exibição. Não interessa qual.
— Vai e não te preocupes connosco. Está tudo sob controle — encoraja o meu marido, enquanto combinamos cada minuto, cada segundo do que irá acontecer e do que terá de fazer durante a minha ausência.
Mais tarde o jantar já fumega na mesa e todos estão contentes, alegres, entretidos com a partilha das histórias do dia. Aproveito um momento particularmente barulhento para me esgueirar pelas escadas até à casa de banho. Estou prestes a entrar na banheira e alguém bate à porta:
— Mãaae, posso entrar e fazer-te companhia? — É a mais velha, quer com certeza contar alguma coisa que a perturbou hoje com as suas amigas. «Bem», penso para mim, «posso ouvi-la enquanto me lavo». Sem problemas, o plano ainda está no ar.
Depois do banho e depois de ter ouvido a mais velha, visto o vestido. Consigo fechá-lo e noto que afinal ele fica um pouco mais largo do que outrora, o decote no peito revela a linha das costelas. Comprovo que estou mais magra, afinal. Já várias pessoas me tinham feito essa observação. O advérbio «tão» antes do «magra» ficou-me na memória. Talvez mude de vestido, será que tenho tempo de escolher outro?
— Lena, podes só mostrar-me onde ponho a pastilha na máquina?
Suspiro e desço com a certeza de que, nas minhas inúmeras recomendações, na véspera, de manhã, antes de ele sair e novamente quando chegou do trabalho, mostrei-lhe o compartimento onde colocar as pastilhas. Coloco eu mesma a pastilha e reparo que a louça, da maneira que está disposta, não vai ficar bem lavada. Reorganizo tudo. Quando subo já não tenho tempo para procurar outro vestido, vai este mesmo.
Tinha pensado em usar uns ganchos prendendo o cabelo por cima das orelhas, como costumava fazer, mas passo apenas a escova para que pareça penteado. Os novos cabelos brancos cintilam no espelho. «Há quanto tempo estão aqui?», pergunto-me. Concentro-me no batom. Está gasto, um pouco achatado, fruto das brincadeiras das meninas que frequentemente assaltam a minha caixa de maquilhagem desatualizada, mas ainda deve dar cor aos lábios. Olho novamente para o espelho que me lembra implacavelmente que o tempo não para e denuncia as novas linhas que se formaram à volta da boca.
— Mãaaae — grita o do meio! — Já verificaste se os meus TPC estão certos?
— Já, sim! – Seguro o batom com firmeza para que o traço saia certo.
— E onde os colocaste? — insiste em gritar-me do andar de baixo.
— No local do costume — respondo, com o batom apontado ao alvo.
— O quê? Não te oiço e não consigo encontrá-los — diz, visivelmente aborrecido.
— Estão no local do costume. Na tua mochila. — digo novamente, já desconcentrada do batom.
— Não estão! Já vi e não estão! — responde, determinado.
Coloco o batom em cima da cómoda e volto a suspirar. Desço novamente e encontro as folhas com os TPC exatamente no local onde as colocara. Reparo, porém, que a mochila está toda desorganizada e algum material necessário para o dia seguinte está em falta. Organizo tudo apesar de o meu filho me assegurar que já o tinha feito e que estava tudo pronto. Queixa-se de que as coisas têm de estar sempre ao meu gosto.
Volto a subir e fecho o batom, vou mesmo sem ele. Desço, agarro na minha bolsa e verifico se lá está a minha carteira e as chaves do carro, vasculhando por uma série de objetos que não são meus. Lembro-me que preciso de limpá-la para mais facilmente encontrar as minhas coisas no meio de tudo aquilo que os meninos me pedem para guardar: pedras que encontram no caminho, pacotes de bolachas vazios, pequenos brinquedos sem os quais, quando saímos de casa, juram que não podem passar, e minutos depois estão entregar-mos porque querem as mãos livres. Não o farei agora. Levo a bolsa assim mesmo. Dirijo-me até à porta e agarro a maçaneta, vislumbrando já os meus breves momentos de liberdade.
— Mamã! — chama-me a mais nova, choramingando. — Estou com dores de barriga. Acho que o jantar que fizeste não me caiu bem.
Olho para a porta de madeira sem me virar e fecho os olhos por momentos.
— Acho que ela está um pouco quente — observa o meu marido, colocando-lhe a mão na testa, alheio ao meu desespero.
Viro-me, largo a bolsa no chão com desânimo e pego na minha filha ao colo. O cinema pode esperar.
Maria João Seixas
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