Ana Curto: Hoje sonhei que...

«Acordou muito só e muito triste. Porque se teria posto a sonhar com a mãe, com o marido? Os mortos eram estorninhos a esvoaçar-lhe num voo cego em redor dos sonhos, e gostaria de poder enxotá-los. A sua cama de viúva era um redemoinho de lençóis aflitos, sentiu que perdia o pé.»
Cláudia Andrade, Quartos de Final e Outras Histórias

Hoje sonhei que...

... os meus olhos se abriam de espanto para encontrarem os teus. Perdidos. Os sentidos alerta como a lua que desperta. Olho à minha volta na ânsia de te encontrar. De te falar. De te olhar.
Os meus olhos. Abertos. Muito abertos.
Por ti.
Para te ver melhor.
Para escutar as lágrimas que brotam sem que as consiga conter.
Penso em ti como se pensa na fruta fresca no verão.
Com vontade de saborear cada segundo.
Por sabê-lo efémero.
Hoje sonhei que o dia ia ser tão brilhante como a lua quando se estende pelo mar.
Sonhei que acreditava.
Acordei a acreditar.
Que o mundo é de luz.
Que a tua graça me seduz.
Hoje sonhei que o dia chegava.
Hoje sonhei que podia ver o sol.
Hoje sonhei que o último mês não aconteceu.
Hoje sonhei que vou abrir os olhos e que tudo está bem.
Que há cores. E luzes. E sons.
Hoje acordei e acreditei.
Estiquei-me para o mundo.
Como se o mundo pudesse ser meu.
Como se o mundo me abraçasse.
Hoje sonhei. E acreditei que eu existo. Hoje sonhei que sou mais do que esta pedra mármore que fecha a cama onde me deito. 
Para sempre.

Ana Curto

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